Políticas e práticas de saúde que ignoram a ciência: o caso da gripe e do Tamiflu® no Brasil

 

por Daniela RG Junqueira

No ano de 2013 o Ministério da Saúde do Brasil veiculou nas rádios do país um chamado afirmando que a gripe mata e que o governo estava agindo contra esse problema oferecendo o medicamento Tamiflu® gratuitamente nos postos de saúde. A matéria também afirmava que todo o brasileiro com sintomas de gripe deveria procurar o posto de saúde.

 

tamiflu

O rádio deixou uma pontada de tristeza ao veicular o anúncio do Ministério da Saúde do Brasil afirmando que a gripe mata e que o medicamento contra a gripe está disponível gratuitamente nos postos de saúde. A tristeza brota das várias reflexões forçadas pelo anúncio, perguntas que ficam sem respostas diante do conhecimento em saúde e de evidências científicas consideradas internacionalmente, mas ignoradas neste país. A tristeza brota também da imagem de postos de saúde e hospitais despreparados e sucateados, incapazes de prestar socorro para suas atribuições básicas, e que provavelmente passarão a receber inúmeros desinformados em busca da milagrosa solução oferecida por esse Ministério.

A gripe ou influenza é uma infecção causada por vírus e, em geral, uma condição benigna de duração limitada, cerca de 7 a 10 dias. Em condições ocasionais, problemas associados à gripe, especialmente em pessoas vulneráveis como idosos, crianças e gestantes, podem precipitar quadros de desidratação e infecções bacterianas das vias aéreas que necessitem de atenção médica. Não existe tratamento medicamentoso para a gripe. Nem antibióticos nem a irracional disponibilidade de medicamentos antigripais, antitussígenos e afins, nas farmácias do nosso país têm ação curativa sobre a gripe.

Em 2009, diante do anúncio da circulação de uma nova variante do vírus causador da gripe na população, conhecida como gripe suína, foi disseminado o uso de um medicamento supostamente desenvolvido para o tratamento da gripe, o chamado oseltamivir (Tamiflu®). A gripe suína caracteriza-se pela variante A/H1N1, que atualmente circula na população com as variantes A/H3N2 e B. A influenza A/H1N1 foi dita pandêmica e diversos governos investiram elevados recursos financeiros com estoques do medicamento oseltamivir temendo uma tragédia de proporções não vistas desde a pandemia de gripe ocorrida em 1918, que dizimou milhões de pessoas no mundo todo. Vale lembrar que nos anos da década de 20 não haviam disponíveis nem antibióticos nem metade do arsenal terapêutico existentes na atualidade, e o tratamento médico e as condições de vida eram infinitamente inferiores, sem falar da fome que grassava na Europa no fim da I Grande Guerra. Apesar da influenza H1N1 ter demonstrado um perfil de morbimortalidade diferenciado (mais letal entre crianças, adultos jovens e grávidas) o vírus comportou-se como um vírus de influenza sazonal tendo, inclusive, sofrido novas recombinações com outros vírus circulantes. Assim, o caráter pandêmico, bem como a temida virulência e letalidade, não se confirmaram e o alerta pandêmico foi posteriormente suspenso.

Obviamente que a menor letalidade do vírus daquela esperada não justificaria uma postura inativa dos sistemas de saúde. De fato, a gripe é uma doença endêmica, ou seja, que ocorre na população todos os anos em todos os períodos, e a monitorização e prevenção devem ser uma constante. Parte relevante desse trabalho tem sido realizada por respeitáveis organizações internacionais no que tange o estudo e monitorização dos efeitos do medicamento pivô dos alardes pandêmicos do ano de 2009: o oseltamivir (Tamiflu®). O oseltamivir é um inibidor de neuraminidase que, por diversas ações no organismo humano, pode reduzir os sintomas da influenza. Atualmente, está disponível também o zanamivir, medicamento da mesma classe terapêutica.

No estudo da eficácia e segurança do oseltamivir e zanamivir, a análise de todos os estudos já publicados sobre esses medicamentos demonstra que, de um grande volume de publicações de diversas naturezas, somente 46 estudos podem ser considerados científicos, mas em sua maioria são avaliados como de baixa qualidade (não confiáveis). Uma investigação utilizando os documentos oficiais da regulamentação do comércio do oseltamivir em diversos países demonstrou que somente 25 estudos científicos de toda a literatura publicada sobre o medicamento possuem qualidade apropriada para uma análise de eficácia e segurança, adequada às diretrizes internacionais para a comercialização de medicamentos. Todos os estudos, mesmo os considerados de qualidade, foram financiados pelos laboratórios produtores; a maioria foi realizada somente em adultos e uma pequena proporção em idosos e pessoas com problemas respiratórios.

Os órgãos reguladores da Inglaterra, Estados Unidos, Europa e Japão apoiaram a necessidade do estudo sobre a eficácia e segurança do oseltamivir e zanamivir disponibilizando informações que puderam completar aquelas insuficientes nos estudos científicos encontrados. No entanto, os autores do estudo da eficácia do oseltamivir e zanamivir foram incapazes de obter o conjunto completo de relatórios de estudos clínicos ou a verificação dos dados do fabricante do oseltamivir (Roche), apesar das cinco solicitações realizadas entre Junho de 2010 e Fevereiro de 2011. Assim, devido à ausência de dados adequados e confiáveis, somente uma análise da minimização dos sintomas da gripe pelo medicamento e da redução no número de hospitalizações pôde ser realizada. Foi demonstrada uma redução de menos de um dia (de 7 dias para 6,3 dias) para o alívio dos sintomas da gripe comparando o oseltamivir com placebo em adultos, mas os efeitos em crianças foram incertos. Não foi encontrado efeito dos medicamentos sobre a hospitalização ou complicações da gripe (pneumonia ou bronquite). No entanto, existem evidências sugerindo que ambos os medicamentos estão associadas a efeitos adversos, sendo náuseas e vômitos relacionados ao uso de oseltamivir, e o provável desenvolvimento de asma pelo uso de zanamivir. Há também relatos de elevação de eventos psiquiátricos com o uso de oseltamivir no tratamento da influenza. Destaca-se que a agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos (Food and Drug Administration) descreve o desempenho desses medicamentos como modesto.

Diante desses dados, talvez minha tristeza possa agora estar justificada. Como profissional de saúde, professora e pesquisadora, faço meu dever de casa: estudo, me atualizo, e me baseio em informações científicas de qualidade em minhas ações profissionais e na formação de meus estudantes. As autoridades do meu país, no entanto, parecem insistir na contramão. Como se já não bastasse o descaso com o nosso sistema público de saúde, que podemos assistir na televisão por meio das filas de um povo desinformado, que tanto sofre, e que continuará sofrendo enquanto essas forem as decisões de saúde e política do país.

 

“A maioria das pessoas assume que, quando visita o seu médico, recebe conselhos imparciais de um especialista com base na melhor pesquisa científica atual.”

David Tovey

 

 

Referências:

World Health Organization (WHO). Global Alert and Response. Disponível: http://www.who.int/csr/disease/swineflu/frequently_asked_questions/levels_pandemic_alale/en/index.html. Acesso em 04 de agosto de 2011.

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Tovey D. Why the Public Accounts Committee Report on Tamiflu Is Important for Us All. Blogs, Huffingtonpost. Disponível: http://www.huffingtonpost.co.uk/dr-david-tovey/tamiflu-report_b_4535688.html?utm_source=All+authors&utm_campaign=4e22be0468-Cochrane_Connect_February_20142_20_2014&utm_medium=email&utm_term=0_fa653271d6-4e22be0468-102843157. Acesso em 18 de março de 2014.

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