Impaludismo, febre palustre, febre terçã ou quartã – muitos nomes e uma só doença: MALÁRIA

por Pedro Verzani e Victor GB Freitas

A malária é uma doença infecciosa prevalente em países subtropicais e tropicais, onde as condições ambientais (clima quente e chuvoso) favorecem a proliferação do vetor, isto é, do mosquito responsável por transmitir o agravo. Estima-se que a malária seja endêmica em 84 países causando anualmente cerca de 247 milhões de infecções e 619 mil mortes. As regiões que concentram o maior número de casos são: África Subsariana, Ásia e América do Sul. A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem como meta a redução de pelo menos 90% dos casos até 2030 e a eliminação da malária em pelo menos 35 países [1,2].

No território brasileiro a malária se intensificou a partir de 1870, com o advento da exploração de borracha na região amazônica, realizada majoritariamente por imigrantes escravizados do continente africano. Mais tarde, a partir da década de 1970, com o projeto de produção e ocupação da Amazônia, um novo perfil epidemiológico foi instalado, trazendo à tona o recrudescimento da malária e de outras epidemias, sobretudo nas áreas devastadas pelo garimpo. Logo, à medida que crescia o desmatamento, a doença foi tomando proporções ainda maiores, já que o parasita começou a se deslocar para o ambiente urbano. Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), entre 2009 e 2015, revelou que a cada km² desmatado, 27 novos casos de malária surgem por ano. Dessa forma, junto às questões socioeconômicas e dificuldades de diagnóstico e tratamento, a malária tornou-se um problema de saúde pública [3,4,5,6,7].

Sabe-se que 99% dos casos registrados provém dos estados da região Norte (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Outra pesquisa da FSP-USP, demonstrou que o índice de transmissão da malária na Amazônia é tão elevado que pode ser comparado com o da África subsaariana. O impacto é tão grande que foi verificado em Machadinho D’Oeste/RO, por exemplo, que uma pessoa infectada pode gerar 58 novos casos por meio da transmissão do parasita para o mosquito. Já os outros 1% dos casos são advindos dos outros estados e do Distrito Federal e possuem maior letalidade devido, especialmente, à demora no diagnóstico e tratamento. Destes, os estados que possuem mais notificações da doença são Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Paraná – regiões da Mata Atlântica. Embora a malária não seja emergente nesses lugares, as estratégias do Programa Nacional de Controle da Malária (PNCM) para reduzir a transmissão da doença e controlar a infecção são adotadas em todo o país [2,8].

As fêmeas do mosquito Anopheles, popularmente conhecidas como mosquito-prego ou muriçoca, são as únicas do gênero que carregam a forma infectante do protozoário Plasmodium que, por meio da picada, transmite a malária para o ser humano. O mosquito transita nos períodos crepusculares (ao amanhecer e ao entardecer), porém também pode picar no período noturno. A doença transmitida pela picada do mosquito infectado não é contagiosa, possui cura e sua transmissão pode ainda, em raros casos, ser por meio de transfusões sanguíneas, principalmente por seringas contaminadas, transplantes de órgãos ou via congênita (da mãe para o feto). Nesse sentido, é de suma importância o diagnóstico e o tratamento como medidas de controle da doença. [1,2,8]

As espécies do Plasmodium que podem causar a malária em humanos são: P. falciparum (mais grave e fatal), P. ovale, P. vivax e P. malarie. No Brasil, predominam os casos de malária por P. vivax. Até então nunca foi registrado a espécie P. ovale na  forma autóctone, ou seja, que tenha surgido no país. A infecção se dá após o mosquito picar um indivíduo e o parasita – na forma de esporozoíto – penetrar a corrente sanguínea até atingir as células do fígado (hepatócitos), dando início ao ciclo pré-eritrocítico ou esquizogonia tecidual, que tem duração de 6 a 15 dias, a depender do plasmódio. Tanto o  P. vivax quanto o P. ovale desenvolvem a forma latente do parasita – hipnozoítos – onde ele fica dormente no fígado até a manifestação de recaídas da doença em períodos posteriores, normalmente 6 meses depois da primeira infecção, mesmo sem nova contaminação [1,2,9].

Ainda nos hepatócitos, os esporozoítos se proliferam e geram novos parasitas (merozoítos) e estes, quando formados, rompem os hepatócitos, abandonando o ciclo tecidual, para adentrar a circulação sanguínea e invadir as células vermelhas (hemácias). Os hepatócitos liberam quantidades diferentes de merozoítos. Por exemplo, na malária causada pelo  P. falciparum, os hepatócitos liberam cerca de 40 mil merozoítos, enquanto na causada pelo P. malariae por volta de 2 mil. Uma vez no sangue, se inicia a fase de esquizogonia sanguínea ou também chamada de eritrocitária e é neste novo ciclo que se iniciam os sintomas da malária [1,2,9].

Desse modo, os merozoítos rompem e invadem novos eritrócitos sucessivas vezes no chamado ciclo eritrocitário ou sanguíneo. Então, em um período de 48 horas (para P. vivax e P. falciparum) e 72 horas (P. malariae), repetidas multiplicações eritrocitárias acontecem: invasão, ruptura e liberação de novos parasitos na corrente sanguínea. A ocorrência da ruptura e liberação de merozoítos configuram as manifestações clínicas iniciais do paroxismo ou acesso malárico. Depois de vários ciclos sanguíneos, alguns dos merozoítos no interior das hemácias assumem a forma sexuada do parasita, os gametócitos (machos e fêmeas). Nas células sanguíneas os gametócitos não se dividem, porém, ao ser picado novamente pelo vetor da malária, acarreta a formação do esporozoíto, ou seja, a forma infectante do protozoário (esporozoíto) na fêmea do mosquito e isso garante a sobrevivência do parasita através de novas transmissões [1,2,9].

A figura a seguir exemplifica como ocorre o desenvolvimento do parasita da malária no hospedeiro (ciclo específico do P. falciparum).

Figura 1: Desenvolvimento do parasita da malária no hospedeiro (ciclo específico do P. falciparum) [10].

Em relação aos sintomas da malária pode-se citar anemia, febre e calafrios, junto a dores no corpo e indisposição (mal-estar), sendo as últimas identificadas durante a fase aguda da doença, chamada de acesso malárico. Em relação à febre, o intervalo de tempo difere de acordo com a espécie do plasmódio infectante. Por exemplo, quando a infecção ocorre por P. vivax, as febres ocorrem em intervalos de 48 horas, já por P. malariae os intervalos são de 72 horas. Por fim, a febre gerada pelo P. falciparum não é periódica, mas pode ocorrer em intervalos de 48 horas  [1,2,8,9].

Em relação à malária causada pelo P. falciparum, os sintomas são geralmente os mais graves, podendo levar o paciente à morte se não tratada. Isso se dá pois as hemácias infectadas grudam nas paredes de pequenos vasos sanguíneos, levando a sua obstrução, podendo causar diversas lesões nos órgãos, devido a falta de oxigênio e nutrientes. Dessa forma, a infecção pelo P. falciparum pode acarretar acúmulo de líquido nos pulmões, problemas respiratórios, insuficiência renal e até mesmo um quadro de hipoglicemia severa  [1,2,8,9].

O diagnóstico da doença envolve a realização de exames laboratoriais e clínicos. Há uma grande variedade de exames, porém o de gota espessa de sangue é considerado padrão-ouro para o diagnóstico laboratorial. Ele consiste na visualização e diferenciação das espécies de Plasmodium por meio da microscopia óptica, usando lâminas coradas a fim de analisar a morfologia e o estágio de desenvolvimento do plasmódio na corrente sanguínea [2,9].

Quanto ao tratamento, esse é oferecido de forma exclusiva e gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) através do Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica, que atende a todas as doenças endêmicas do país. Os medicamentos utilizados visam interromper as fases do ciclo evolutivo dos parasitas. De modo geral, as principais fases que devem ser alvo no tratamento da malária são: esquizogonia sanguínea – responsável pela patogenia e pelas manifestações sintomáticas da infecção; a formação de hipnozoítos – formas latentes que evoluem para o surgimento de recaídas; e o desenvolvimento das formas sexuadas dos parasitas (gametócitos) – responsável pela continuidade da transmissão da malária para o vetor que, em seguida, pica outro indivíduo [1,2]. 

Os medicamentos de primeira escolha para o tratamento da malária são cloroquina e primaquina. O esquema terapêutico a ser utilizado depende da espécie do protozoário identificado, do peso e da idade do paciente. Estes antimaláricos atendem aos objetivos do tratamento e, por isso, são os mais utilizados. A cloroquina atua na esquizogonia sanguínea impedindo o rompimento dos eritrócitos e a liberação dos merozoítos na corrente sanguínea. Dentro das hemácias o parasita converte a hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio), que é tóxica para ele, em hemozoína, um pigmento malárico que é inerte para o protozoário. No entanto, a cloroquina além de inibir essa conversão, também aumenta o pH dos compartimentos do parasita, levando-o à morte. Por outro lado, a primaquina é usada para atingir o parasita na corrente sanguínea, mas principalmente na sua forma latente, reduzindo a recrudescência e recaída da infecção. Em relação às reações adversas, a cloroquina, está associada a manifestação de danos reticulares, cardíacos e neuromusculares. Enquanto a primaquina, em pessoas com deficiência da enzima glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), pode levar ao quadro de hemólise, isto é, ruptura das hemácias levando ao escurecimento da urina, anemia grave, icterícia e fadiga [1,2]. 

O Guia de tratamento da malária no Brasil, publicado em 2021, traz informações sobre o manejo da doença em grupos especiais, como gestantes, idosos e crianças, além de trazer outras alternativas terapêuticas para casos específicos, como artesunato + mefloquina e artemeter + lumefantrina. Ademais, é ressaltado também a importância da adesão ao tratamento com os antimaláricos para evitar a ocorrência de resistência dos parasitas e a piora da doença. Nesse sentido, é recomendado o acompanhamento farmacoterapêutico para contornar os problemas relacionados ao uso de medicamentos de indicação, efetividade, segurança e conveniência [1,2].

 

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Figura 2: infográfico Malária – ciclo de vida no ser humano e tratamento

No que se refere às medidas preventivas, é recomendado o uso de repelentes (à base de N-N-dietilmetatoluamida (DEET)), uso de telas em portas e janelas, condições adequadas de saneamento e mosquiteiros com inseticidas de longa duração para evitar a transmissão da doença. Além disso, o uso de roupas claras e de manga comprida é uma estratégia a ser adotada principalmente em áreas onde a malária é endêmica, como nos estados amazônicos. A quimioprofilaxia (uso de medicamentos para prevenir a infecção), outrora recomendada para o indivíduo que viajava para as regiões com alto risco de transmissão, atualmente não é uma abordagem utilizada, principalmente devido a existência da rede de tratamento e diagnósticos nesses locais. A vacina disponível para a malária previne a infecção causada pelo P. falciparum e é destinada para crianças do continente africano, onde esse plasmódio é prevalente. Até o momento não existe imunizante contra a malária no Brasil. Porém, pesquisas apoiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) vêm sendo realizadas para desenvolver uma vacina contra o P. vivax, espécie responsável pela maioria dos casos da enfermidade no país [2,8,11,12].

Diante dos dados apresentados, é essencial que os pacientes diagnosticados com malária sejam submetidos rotineiramente a exames clínicos e laboratoriais para que o tratamento seja o mais efetivo e seguro possível. O enfrentamento conjunto é essencial para a erradicação da doença e portanto, o manejo da malária não é um ato privativo do médico no sistema público de saúde, logo, outros profissionais, incluindo os farmacêuticos, podem e devem ser procurados para prestar as orientações e indicações terapêuticas necessárias [2].

Referências:

[1] POESPOPRODJO, Jeanne Rini; DOUGLAS, Nicholas M; ANSONG, Daniel; KHO, Steven; ANSTEY, Nicholas M. Malaria. Lancet, [S. l.], ano 2023, v. 402, n. December 16, p. 2328–45, 1 nov. 2023. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673623012497?fr=RR-7&ref=pdf_download&rr=8836ada3ec553559 . Acesso em: 28 abr. 2024.


[2] Ministério da Saúde. Guia de tratamento da malária no Brasil 2º edição 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/malaria/tratamento/guia_tratamento_malaria_2nov21_isbn_site.pdf/view

[3] Centro de Informação em Saúde para Viajantes (Cives). Malária. Disponível em: https://cives.ufrj.br/informacao/malaria/mal-iv.html

[4] ROCHA, M. D. N. A.; FERREIRA, E. A. P.; SOUZA, J. M. D. Aspecto histórico da malária. Revista Paraense de Medicina, v. 20, p. 81-82, 2006. ISSN 0101-5907. Disponível em: < http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-59072006000300018&nrm=iso >.

[5] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP). Um quilômetro quadrado desmatado na Amazônia equivale a 27 novos casos de malária. Jornal da USP, 28 maio 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/um-quilometro-quadrado-desmatado-na-amazonia-equivale-a-27-novos-casos-de-malaria/ . Acesso em: 13 maio 2024.

[6] Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON). Linha do tempo: entenda como ocorreu a ocupação da Amazônia. IMAZON. 1 ago. 2013. Disponível em:https://imazon.org.br/imprensa/linha-do-tempo-entenda-como-ocorreu-a-ocupacao-da-amazonia/ . Acesso em: 13 maio 2024.

[7] Jornal da USP. Desmatamento modifica dinâmica de transmissão e impulsiona malária na Amazônia. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/desmatamento-modifica-dinamica-de-transmissao-e-impulsiona-malaria-na-amazonia/

[8] Ministério da Saúde. Malária. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/m/malaria

[9] Ministério da Saúde. Manual de Diagnóstico Laboratorial de Malária. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/malaria_diag_manual_final.pdf

[10] China erradica malária após 70 anos. ISTO É, 29 jun. 2021. Disponível em: https://istoe.com.br/china-erradica-malaria-apos-70-anos/ . Acesso em: 20 maio 2024.

[11] Secretaria de Saúde Pública. Governo do Pará. Disponível em: http://www.saude.pa.gov.br/a-secretaria/diretorias/dvs/malaria/o-que-e-malaria

[12] Imunização pioneira. Pesquisa FAPESP, 19 out. 2021. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/imunizacao-pioneira/ . Acesso em: 20 maio 2024. 

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