Série COVID-19: hidroxicloroquina

Por Nathália Quetz

A cloroquina é um medicamento derivado das quinolinas usado no tratamento e quimioprofilaxia da malária1. A hidroxicloroquina é derivada da cloroquina e seu uso é preferido em tratamentos que requerem altas doses deste medicamento por causar menor toxicidade ocular1. Devido às características anti-inflamatórias de ambos os fármacos*, eles também podem ser indicados na terapia de doenças não maláricas, como amebíase hepática, artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico, dentre outras2.

Pesquisas avaliando a atividade antiviral da cloroquina e hidroxicloroquina antecedem a pandemia da COVID-19. Em um estudo publicado em 2006, foi observada atividade  in vitro* desses medicamentos contra os vírus HIV e SARS-CoV3. Contudo, é importante destacar que experimentos realizados em células isoladas não são evidências suficientes para comprovar a eficácia e segurança de um medicamento no tratamento ou prevenção de uma doença em seres humanos. O corpo humano apresenta complexidade consideravelmente maior do que células isoladas, de modo que um resultado promissor in vitro não significa que o resultado será reproduzível in vivo*. A pesquisa in vitro é apenas uma das etapas que precedem estudos in vivo em animais e, posteriormente, estudos envolvendo seres humanos. Sendo assim, não é prudente extrapolar resultados in vitro diretamente para seres humanos. 

Com o início das infecções pelo SARS-CoV-2 e subsequente pandemia de COVID-19, pesquisas com diversos fármacos começaram a ser realizadas para a identificação de medicamentos eficazes no combate ao novo coronavírus. Devido à ação antiviral in vitro da cloroquina e hidroxicloroquina demonstrada previamente, estes medicamentos foram candidatos a reposicionamento* para avaliação de uma possível eficácia contra o SARS-CoV-2. Ambos demonstraram efeito in vitro na diminuição da replicação viral do novo coronavírus, sendo que a hidroxicloroquina apresentou maior ação antiviral4. Contudo, dois estudos publicados em 2020 apresentam resultados controversos. Em um estudo in vitro com células pulmonares humanas, a cloroquina não foi eficaz na inibição da replicação viral do SARS-CoV-2 e em um estudo in vivo em primatas não-humanos, a hidroxicloroquina não apresentou eficácia contra o novo coronavírus5,6.

Mesmo diante das controvérsias de resultados dos  estudos in vitro, diversos ensaios clínicos randomizados* (ECR) com esses medicamentos foram realizados, considerando a situação emergencial imposta pela pandemia. Esses estudos foram avaliados em uma revisão sistemática publicada em fevereiro de 2021 em que foram incluídos 14 ensaios, sendo 12 deles avaliando a hidroxicloroquina ou a cloroquina no tratamento da COVID-19 e 2 deles avaliando a hidroxicloroquina na prevenção da doença. No total, foram incluídos 11915 pacientes adultos, hospitalizados ou não, com COVID-19 leve a grave7.

Os resultados encontrados na revisão (número de óbitos devido a alguma causa, chance de apresentar teste PCR negativo no 14º dia de acompanhamento, progressão para ventilação mecânica e o tempo de melhora clínica dos pacientes) foram estatisticamente semelhantes entre os grupos que utilizaram hidroxicloroquina,  tratamento padrão (terapia de oxigênio, antivirais, antibacterianos, imunoglobulina e corticosteróides no estudo Chen 2020b) ou placebo. Contudo, o número de pacientes que apresentou algum evento adverso foi maior no grupo hidroxicloroquina: 46% contra 16% do grupo de tratamento padrão ou placebo7.

Na revisão, também foi avaliada a potencial capacidade de prevenção de COVID-19 em pessoas que foram expostas ao vírus SARS-CoV-2. Foram incluídos dois ensaios, com um total de 3346 participantes adultos sem sintomas e não hospitalizados. Os resultados de um dos ensaios não mostraram diferença na comparação entre o grupo hidroxicloroquina e o grupo placebo. Porém, o grupo hidroxicloroquina apresentou maior risco de ocorrência de eventos adversos, sendo 41% contra 17% no grupo placebo. No outro ensaio avaliado, os resultados mostraram que não houve diferença no risco de desenvolvimento de COVID-19 sintomática ou na produção de anticorpos contra o SARS-CoV-2 entre o grupo hidroxicloroquina e o grupo que não recebia hidroxicloroquina7.

Os autores concluíram que não houve benefício no uso da hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados. Além disso, houve aumento do risco de ocorrência de eventos adversos. Logo, benefícios na administração em pacientes não internados também não são esperados. Ademais, são restritos os indícios de que a hidroxicloroquina seja eficaz na profilaxia da COVID-197. Resultados semelhantes foram encontrados em outros estudos que investigaram o uso da hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico de COVID-198,9,10, portanto, ela não deve ser utilizada no tratamento e/ou prevenção dessa doença. 

É importante ressaltar que ainda não existem medicamentos com eficácia comprovada para a prevenção da COVID-19 e seu tratamento também não envolve o uso de hidroxicloroquina dada a falta de evidências de eficácia para essa finalidade. Logo, o distanciamento social, o uso de máscara e a higienização das mãos continuam sendo as únicas medidas disponíveis e efetivas para a prevenção da transmissão do novo coronavírus. Portanto, não use medicamentos por conta própria e no caso de aparecimento de sinais e sintomas, um profissional de saúde deve ser consultado.

Referências:

1. Vinetz J. M., Clain J., Bounkeua V., Eastman R. T., Fidock D. Quimioterapia da malária. In: Brunton L. L., Chabner B. A, Knollmann B. C. As bases farmacológicas da terapêutica de Goodman & Gilman. 12ª edição. Porto Alegre: AMGH, 2012. p. 1402

2. Vinetz J. M., Clain J., Bounkeua V., Eastman R. T., Fidock D. Quimioterapia da malária. In: Brunton L. L., Chabner B. A, Knollmann B. C. As bases farmacológicas da terapêutica de Goodman & Gilman. 12ª edição. Porto Alegre: AMGH, 2012. p. 1405

3. Biot C., Daher W., Chavain N., Fandeur T., Khalife J., et al. Design and Synthesis of Hydroxyferroquine Derivatives with Antimalarial and Antiviral Activities.  Journal of Medicinal Chemistry, American Chemical Society, 2006, 49, pp.2845.<10.1021/jm0601856>.<hal-00099876>

4. Yao X, Ye F, Zhang M, et al. In vitro antiviral activity and projection of optimized dosing design of hydroxychloroquine for the treatment of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2). Clin Infect Dis. 2020. [PMID: 32150618] doi:10.1093/cid/ciaa237

5. Hoffmann, M., Mösbauer, K., Hofmann-Winkler, H. et al. Chloroquine does not inhibit infection of human lung cells with SARS-CoV-2. Nature 585588–590 (2020). https://doi.org/10.1038/s41586-020-2575-3

6. Maisonnasse P., Guedj J., Contreras V. et al. Hydroxychloroquine use against SARS-CoV-2 infection in non-human primates. Nature 585, 584–587 (2020). https://doi.org/10.1038/s41586-020-2558-4

7. Singh B., Ryan H., Kredo T., Chaplin M., Fletcher T. Chloroquine or hydroxychloroquine for prevention and treatment of COVID-19. Cochrane Database of Systematic Reviews 2021, Issue 2. Art. No.: CD013587. DOI: 10.1002/14651858.CD013587.pub2

8. Self W. H., Semler M. W. , Leither L. M., et al. Effect of Hydroxychloroquine on Clinical Status at 14 Days in Hospitalized Patients With COVID-19: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 2020;324(21):2165-2176. doi:10.1001/jama.2020.22240

9. Pathak D. S. K., Salunke D. A. A. , Thivari D. P. , et al. No benefit of hydroxychloroquine in COVID-19: Results of Systematic Review and Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials”. Diabetes Metab Syndr. 2020;14(6):1673-1680. doi:10.1016/j.dsx.2020.08.033

10. RECOVERY Collaborative Group, Horby P, Mafham M, et al. Effect of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(21):2030-2040. doi:10.1056/NEJMoa2022926

*Glossário: 

Fármaco: substância conhecida e estudada que apresenta efeito no sistema biológico com finalidade terapêutica de cura, prevenção, diagnóstico ou paliativa. 

In vitro: estudos realizados em células de seres vivos e cultivadas em laboratório. 

In vivo: estudos realizados em organismos vivos, sejam animais ou humanos. 

Reposicionamento: estratégia de estudo para avaliar a aplicação de um medicamento já existente em uma condição que não está referenciada. Ou seja, estuda-se a eficácia de um fármaco já existente em uma doença ou condição que ele não é prescrito. 

Ensaios clínicos randomizados: estudo experimental capaz de proporcionar evidências mais fortes. Os participantes são alocados de forma aleatória em um grupo controle ou um grupo intervenção. 

Referências glossário: 

1.Mariano Bacellar Netto. Ensaios “in vitro” [Internet]. São Paulo: Instituto Nacional de Avaliação da Conformidade em Produtos; 2019 [atualizado em 2019 mar. 08; citado em 2021 mar. 30]. Disponível em: http://www.innac.org.br/ensaios-in-vitro/

2.François Noel. 16. Reposicionamento de fármacos [Internet]. Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental; 2020 [atualizado em 2020 jul.; citado em 2021 mar. 30]. Disponível em: https://www.sbfte.org.br/wp-content/uploads/2020/06/16_Reposicionamento_farmacos1.pdf

3.Oliveira MAP, Velarde LGC, Sá RAM. Ensaios clínicos randomizados: Série Entendendo a Pesquisa Clínica 2. Femina. 2015 jan. – fev.; 43 (1). Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2015/v43n1/a4842.pdf

É possível substituir a terapia intravenosa pela oral no uso de antimicrobianos?

Emilly Carvalho

Antimicrobianos são medicamentos usados para tratar ou prevenir doenças infecciosas causadas por microrganismos como bactérias, vírus, fungos e parasitas1. O primeiro antibiótico foi descoberto em 1928, pelo médico inglês Alexander Fleming, que observou uma camada do, hoje conhecido, fungo Penicilium sobre culturas de bactérias. Esse fungo era capaz de secretar uma substância que destruía as bactérias da cultura. A partir da descoberta dessa substância, denominada penicilina, vários outros antimicrobianos foram desenvolvidos e, atualmente, são amplamente utilizados no tratamento de doenças2.  

Sempre que possível, a administração oral deve ser preferida, mesmo em ambiente hospitalar, pois confere uma administração menos invasiva, mais confortável e segura para o paciente. Além disso, diminui o risco de tromboflebite* e de possíveis infecções relacionadas ao uso de cateter para a administração de medicamentos por via intravenosa, e pode antecipar a alta hospitalar, já que o tratamento poderá ser continuado em casa3.

A substituição da terapia intravenosa para a oral também beneficia a instituição na qual aquele paciente está internado, pois há redução de custos para o hospital, uma vez que os medicamentos orais são normalmente mais baratos do que os intravenosos e há economia de materiais como seringas e tubos. Com a redução do tempo de internação do paciente, também há menos gastos com leitos e menor probabilidade de infecções hospitalares. Estima-se que 83% dos pacientes hospitalizados recebem antimicrobianos desnecessariamente, após um período de 72h do início de estabilização do quadro clínico. Isso aumenta os custos do tratamento em cerca de 200%4.

A transição da terapia intravenosa para a terapia oral pode ser realizada em algumas situações, sendo inclusive recomendada. Para isso é importante observar alguns aspectos:

– Verificar se o paciente apresentou melhora com o tratamento intravenoso;

– Averiguar se ele suporta a terapia oral (ex.: deglutição e absorção gastrointestinal preservadas);

– Verificar se a apresentação do medicamento utilizado na substituição vai promover a mesma biodisponibilidade* que a daquele usado na terapia intravenosa5,6.

Observadas todas essas condições e frente a disponibilidade de um antimicrobiano adequado para fazer a transição, é possível substituir a via de administração. A substituição sempre deve ser monitorada pela equipe de saúde e, se houver piora no quadro clínico, deve-se considerar retornar para a terapia intravenosa3.

A melhor via de administração a ser escolhida é aquela em que o medicamento atinge as concentrações necessárias para fazer o efeito esperado5. Qualquer tipo de mudança de terapia deve ser realizada por um médico (a) com o auxílio de um farmacêutico (a) para promover o uso seguro dos medicamentos. O uso correto destes medicamentos é importante para evitar o aumento de resistência dos microrganismos e manter a efetividade dos tratamentos.

Referências

  1. Eucides Batista da Silva. Antimicrobianos. Fundação de Medicina Tropical. Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: http://www.fmt.am.gov.br/manual/antimic.htm
  2. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial. Alexander Fleming e a descoberta da penicilina. [internet] Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-24442009000500001
  3. Kate McCarthy, Minyon Avent. Oral or intravenous antibiotics? Australian Pescriber. Acesso em 2020 Out 20. [internet] Disponível em: https://www.nps.org.au/assets/p45-McCarthy-Avent.pdf
  4. Lizanne Béïque, Rosemary Zvonar. Adressing concerns about changing the routes of antimicrobial administration from intravenous to oral in adults inpacients. [internet] Acesso em 2020 Dez 22. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26327706/
  5. Uso racional de antimicrobianos e a resistência microbiana. Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa). [internet] Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/controle/rede_rm/cursos/atm_racional/modulo1/uso_estrategias8.htm
  6. IV to Oral Switch Clinical Guideline for adult patients: Can antibiotics S.T.O.P. [internet] Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: https://www.sahealth.sa.gov.au/wps/wcm/connect/86d0af8047ca4a108ca28dfc651ee2b2/Clinical_Guideline_IV+to+Oral_Switch_v1.1_06.06.2019.pdf?MOD=AJPERES&amp;CACHEID=ROOTWORKSPACE-86d0af8047ca4a108ca28dfc651ee2b2-n5i8u7w
  7. Bula fluconazol. Bulário Anvisa. [internet] Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/frmVisualizarBula.asp
  8. Bula doxiciclina. Bulário Anvisa. [internet] Acesso em 2020 Out 20. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/frmVisualizarBula.asp

Glossário

Tromboflebite: formação de coágulo e inflamação nas veias.

Biodisponibilidade: indica a velocidade e concentração com que um fármaco alcança o seu local de ação.

Referências do glossário: Biblioteca Virtual em Saúde