E o Cemed completa 30 anos!

Editorial

Por Edson Perini e Cristiane Menezes de Pádua

O ano de 1990 nos ameaçava com um fim melancólico. Éramos um pequeno grupo de professores, no menor departamento da UFMG, e assistíamos angustiados o fluir de muitas ideias. O medo de que nossos ideais fossem insuficientes para romper as forças inerciais nos assustava. Nossas reuniões eram sufocantes. Diante de nós poucas referências, em geral espalhadas sobre a mesa. Ainda me lembro de ‘A invasão Farmacêutica’ (Dupuy & Karsenty), terrivelmente atual, trazendo-nos uma perspectiva forânea já madura, e de ‘A questão dos remédios no Brasil – Produção e Consumo’ (Geraldo Giovanni), apontando uma abordagem autóctone dos determinantes e consequências médico-sociais do consumo de medicamentos, mostrando que as análises dos filósofos franceses nada tinham de exótico ao Brasil. A cada artigo que se espalhava naquela mesa ficava mais clara a necessidade de inserir mais uma perspectiva na formação farmacêutica em nossa escola, além das tradicionais.

Lá fora, a Farmacoepidemiologia singrava de vento em popa – ainda nova, mas pujante, com a força e a graça próprias da juventude, e a alegria de um vento novo, novos ares. Aqui enumerávamos as poucas (e boas) produções, fruto de pessoas isoladas, cujos gênios irrequietos nos mostravam caminhos. Éramos um grupo pequeno, formado há pouco tempo em uma ilha na estrutura acadêmica da farmácia no país. Não tínhamos uma formação robusta, mas sobrava convicção de que parcela considerável dos estudantes da Faculdade de Farmácia da UFMG dividia conosco essa angústia. Portanto, encontrar uma ideia que trouxesse a eles oportunidade de conhecer essa (então) nova faceta do medicamento que se descortinava para nós era uma questão de honra, e para nós um caminho para nos formar enquanto trabalhávamos na formação deles. Não era justo que, por fraqueza, tudo que estudávamos ficasse restrito a nós. A reforma curricular, que permitiu a formação de nosso departamento e criação de algumas disciplinas, era insuficiente. Precisávamos estar mais próximos deles.

Assim nasceu o Centro de Estudos do Medicamento, o Cemed, em 1991. Um projeto, uma ideia que se misturava à fumaça dos cigarros e às pequenas xícaras de café com suas riscas azuis sobre uma mesa meio carcomida. Bastou uma estante e um arquivo de metal, alguns livros e artigos e tudo nos pareceu esperança: tínhamos uma ideia!

A vida nos espalhava segundo as necessidades de cada um, ao mesmo tempo em que a nossa formação se aprofundava. E cada vez mais estudantes gravitavam em torno dessa ideia. Muitos se espalham no país (ou fora dele) em diferentes frentes de trabalho, e nos brindam com suas aparições, eventuais e fisicamente distantes, porém sempre próximas do sentimento partilhado. Hoje, passados 30 anos, a alegria se renova a cada estudante e profissional que alimenta o sonho e o torna uma nova realidade a cada texto publicado, a cada seminário, a cada pesquisa, ampliando essa experiência com suas expertises nas novas tecnologias de informação.

O desafio online da comunicação em saúde vem se aprofundando no uso das redes sociais. À medida que as redes sociais se tornam canais “obrigatórios”, o Cemed se adapta às novas demandas de comunicação com seu público. Durante a pandemia de COVID-19, nosso trabalho adotou o modo remoto, e o uso de ferramentas virtuais nos permite dar continuidade às atividades de formação acadêmica, extensão universitária e pesquisa. E, neste contexto, a informação sobre saúde e medicamentos, qualificada pela interpretação clara das evidências científicas que as embasam, acessível a públicos diferentes e isenta de interesses comerciais tem se mostrado ainda mais necessária, legitimando o papel dos centros de informação do medicamento.

Nesses 30 anos, muita coisa aconteceu. Mas as centenas de pessoas que por aqui passaram, estudantes de graduação, de pós-graduação e profissionais, e aqueles que ainda hoje fazem deste um espaço de cultura, de ciência e de alegria, são nossas grandes homenageadas. A todos que fizeram parte dessa história, nosso sincero agradecimento!

Série COVID-19: dexametasona

por Glória Duarte

A COVID-19 é uma síndrome respiratória causada pelo vírus SARS-COV-2, que se espalhou rapidamente pelo mundo, sobrecarregando os sistemas de saúde em diversos países. Os casos clínicos da infecção podem ocorrer desde quadros assintomáticos ou leves até quadros graves, em que os pacientes desenvolvem síndrome do desconforto respiratório agudo, requerendo o uso de ventilação mecânica prolongada1,2.

A fisiopatologia dos quadros graves de COVID-19 é determinada pelo desenvolvimento de pneumonia viral e pela presença marcante de citocinas pró-inflamatórias*, como interleucinas* (IL), fator de necrose tumoral* (TNF)-α, proteína C-reativa* (PCR), ferritina* e dímero-D*, processo chamado de “tempestade de citocinas”2,3,4. Dessa maneira, uma série de eventos como infiltração pulmonar, hiperinflamação, sepse, choque, insuficiência respiratória, falência múltipla de órgãos e até morte podem ser desencadeadas4 em resposta ao processo inflamatório.

A resposta imune dos pacientes com quadro grave determina a escolha da estratégia de possíveis tratamentos. Logo, a utilização de agentes imunomoduladores* pode ser importante para tratar sintomas inflamatórios e prevenir a progressão de falência múltipla de órgãos e morte3,4. Dentre eles, o papel de corticosteroides vem sendo discutido, já que possuem propriedades antiinflamatórias e imunossupressoras, envolvendo a inibição de mediadores inflamatórios, como as citocinas4,5.

No estudo RECOVERY foram observados benefícios no emprego de dexametasona em pacientes em estado crítico2,6. O número de óbitos entre pacientes hospitalizados que receberam dexametasona por via oral ou endovenosa, 6 mg uma vez por dia, durante 10 dias, foi menor quando comparado aos pacientes que receberam apenas ventilação mecânica invasiva (29,3% vs. 41,4%) e entre os pacientes que receberam apenas oxigênio de suporte (23,3% vs. 26,2%)3.

Diante disso e frente aos resultados de outros seis ensaios clínicos randomizados7-12, a Organização Mundial de Saúde (OMS) preparou diretrizes para a utilização de dexametasona no tratamento da COVID-19, recomendando:

  • o uso de corticosteroides, administrados pelas vias oral ou endovenosa, em pacientes com quadros graves de COVID-19 e pacientes que necessitem de suporte de oxigênio6;
  • que pacientes que não se enquadrem na condição acima não sejam tratados com corticosteroides.

A dexametasona é, portanto, uma possibilidade de tratamento para pacientes com quadros graves de COVID-19, reduzindo o risco de óbitos2,6. É importante que corticosteroides não sejam utilizados em pacientes com quadro leve, que não necessitem de suporte de oxigênio, visto que esses medicamentos são imunossupressores, o que pode favorecer o aumento da taxa de replicação viral e, logo, serem prejudiciais para estes pacientes1,6.

É importante ressaltar que ainda não existem medicamentos com eficácia comprovada para a prevenção da COVID-19 e seu tratamento pode envolver o uso de dexametasona, dependendo da gravidade do caso. Logo, a vacinação, o distanciamento social, o uso de máscara e a higienização das mãos continuam sendo as únicas medidas disponíveis e efetivas para a prevenção da transmissão do novo coronavírus. Portanto, não use medicamentos por conta própria e no caso de aparecimento de sinais e sintomas, um profissional de saúde deve ser consultado.

Referências:

1. van Paassen J, Vos JS, Hoekstra EM, Neumann KMI, Boot PC, Arbous SM. Corticosteroid use in COVID-19 patients: a systematic review and meta-analysis on clinical outcomes. Crit Care. 14 de dezembro de 2020;24(1):696. 

2. Horby P, Lim WS, Emberson J, Mafham M, Bell J, Linsell L, et al. Effect of Dexamethasone in Hospitalized Patients with COVID-19 – Preliminary Report. medRxiv. 22 de junho de 2020;2020.06.22.20137273. 

3. Asselah T, Durantel D, Pasmant E, Lau G, Schinazi RF. COVID-19: Discovery, diagnostics and drug development. J Hepatol. janeiro de 2021;74(1):168–84.

4. Rizk JG, Kalantar-Zadeh K, Mehra MR, Lavie CJ, Rizk Y, Forthal DN. Pharmaco-Immunomodulatory Therapy in COVID-19. Drugs. setembro de 2020;80(13):1267–92.

5. Abubakar AR, Sani IH, Godman B, Kumar S, Islam S, Jahan I, et al. Systematic Review on the Therapeutic Options for COVID-19: Clinical Evidence of Drug Efficacy and Implications. Infect Drug Resist. 2020;13:4673–95. 

6. Coronavirus disease (COVID-19): Dexamethasone [Internet]. [citado 22 de fevereiro de 2021]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/q-a-detail/coronavirus-disease-covid-19-dexamethasone

7. Corral-Gudino L, Bahamonde A, Arnaiz-Revillas F, Gómez-Barquero J, Abadía-Otero J, García-Ibarbia C, et al. GLUCOCOVID: A controlled trial of methylprednisolone in adults hospitalized with COVID-19 pneumonia. medRxiv. 18 de junho de 2020;2020.06.17.20133579. 

8. Villar J, Añón JM, Ferrando C, Aguilar G, Muñoz T, Ferreres J, et al. Efficacy of dexamethasone treatment for patients with the acute respiratory distress syndrome caused by COVID-19: study protocol for a randomized controlled superiority trial. Trials. 16 de agosto de 2020;21(1):717.

9. Tomazini BM, Maia IS, Cavalcanti AB, Berwanger O, Rosa RG, Veiga VC, et al. Effect of Dexamethasone on Days Alive and Ventilator-Free in Patients With Moderate or Severe Acute Respiratory Distress Syndrome and COVID-19: The CoDEX Randomized Clinical Trial. JAMA. 6 de outubro de 2020;324(13):1307–16.

10. Dequin P-F, Heming N, Meziani F, Plantefève G, Voiriot G, Badié J, et al. Effect of Hydrocortisone on 21-Day Mortality or Respiratory Support Among Critically Ill Patients With COVID-19: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 6 de outubro de 2020;324(13):1298.

11. The Writing Committee for the REMAP-CAP Investigators, Angus DC, Derde L, Al-Beidh F, Annane D, Arabi Y, et al. Effect of Hydrocortisone on Mortality and Organ Support in Patients With Severe COVID-19: The REMAP-CAP COVID-19 Corticosteroid Domain Randomized Clinical Trial. JAMA. 6 de outubro de 2020;324(13):1317.

12. Siemieniuk RA, Bartoszko JJ, Ge L, Zeraatkar D, Izcovich A, Kum E, et al. Drug treatments for covid-19: living systematic review and network meta-analysis. BMJ. 30 de julho de 2020;370:m2980. 

Glossário:

Citocinas pró inflamatórias: citocinas são proteínas produzidas e secretadas pelas células da imunidade e possuem diversas funções na resposta inflamatória e imune. Citocinas pró inflamatórias são aquelas que aumentam a reação inflamatória.

Interleucinas (IL): citocinas.

Fator de necrose tumoral (TNF)-α: citocina pró inflamatória produzida principalmente por macrófagos que regula a apoptose celular (morte celular programada), entre outras funções. 

Proteína C-reativa (PCR): proteína plasmática relacionada à resposta imune às infecções bacterianas. 

Ferritina: proteína produzida pelo fígado, responsável pelo armazenamento de ferro no organismo. Sua produção é aumentada durante infecções para evitar que microrganismos capturem ferro. 

Dímero-D: produto da degradação da fibrina, que é uma proteína relacionada à coagulação. O aumento da concentração de dímero-D em pacientes com COVID-10 indica a formação de coágulos pulmonares. 

Hiperinflamação: a inflamação é uma reação complexa em resposta à infecções ou à lesões celulares e que envolve acúmulo de diversas proteínas e células do sistema imune.  Hiperinflamação é a inflamação exacerbada. 

Agentes imunomoduladores: substâncias que podem aumentar (imunoestimuladores) ou diminuir (imunossupressores) a resposta imune.

Referências do glossário:

ABBAS, A.K.; LICHTMAN, A.H.; PILLAI, S. Imunologia Celular e Molecular. 8ᵃ Edição. Elsevier, 2015.

https://www.lustosa.com.br/medicos/ultimas-publicacoes/30-06-2020/a-importancia-do-dimero-d-no-acompanhamento-da-covid19