Por Júlia Estevão
A Cannabis sativa L., nome científico da planta popularmente conhecida por maconha, tem seu uso datado desde a antiguidade para produção de fibras, óleos e para fins medicinais. Até o momento, mais de 500 compostos químicos foram identificados em sua composição, sendo 100 desses classificados como canabinóides: substâncias que interagem com os receptores CB1 e CB2 do sistema endocanabinóide. Nessa classe estão inseridos os dois principais compostos com atividade farmacológica presentes na planta, o delta-9-tetrahidrocanabidiol (THC) que apresenta efeito psicotrópico, e o canabidiol (CBD), não psicotrópico1. Os mecanismos de ação pelos quais esses compostos atuam no organismo ainda não estão totalmente esclarecidos, no entanto, estudos vêm sendo realizados a fim de elucidar suas atividades terapêuticas e potenciais riscos à saúde.
Em consonância com os resultados de estudos pré-clínicos realizados em modelo animal, as evidências dos estudos clínicos em humanos apoiam o uso do CBD como ansiolítico no tratamento de transtornos incluindo estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade generalizada, fobia social e transtorno obsessivo-compulsivo quando utilizado em doses agudas. Entretanto, são necessários mais estudos científicos que avaliem a segurança de seu uso de forma crônica6. Apesar de já existirem médicos prescritores de medicamentos contendo CBD em vários países, a utilização do composto como tratamento para outras condições clínicas como tratamento da dor, doenças autoimunes e outros distúrbios psiquiátricos necessitam de ensaios clínicos controlados e randomizados adequados (ex. tamanho amostral suficiente) para o acúmulo de evidências robustas sobre sua segurança e eficácia. A dificuldade em se realizar pesquisas científicas com produtos à base de Cannabis para fins terapêuticos ocorre devido à ausência de regulamentação rigorosa sobre a rotulagem desses produtos (principalmente óleos), pela grande variedade no teor dos compostos presentes nas plantas oriundas de diferentes locais, sob diferentes condições de cultivo e pelos estigmas sociais7.
Apesar desses impasses, o relatório publicado em 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) caracteriza o CBD como um composto com um perfil de segurança favorável e efeitos adversos limitados, além de apresentar baixo risco potencial de abuso. Embora esse composto seja bem tolerado pela maioria da população, os efeitos adversos que incluem sonolência, tontura, boca seca, baixa de pressão e alterações de humor devem ser cuidadosamente avaliados quando administrados a longo prazo principalmente em populações específicas como crianças, idosos e indivíduos susceptíveis ao desenvolvimento de quadros psicóticos. Além disso, não devem ser desconsiderados os riscos de interações medicamentosas quando administrado concomitantemente a outros medicamentos tidos como convencionais, o que pode afetar a efetividade e o perfil de toxicidade dos tratamentos8.
O CBD é o principal composto fitocanabinóide e é alvo de pesquisas para fins terapêuticos. Evidências baseadas em estudos pré-clínicos sugerem um amplo perfil farmacológico devido à suas significativas interações com receptores responsáveis pela regulação de funções fisiológicas, como controle motor, modulação da dor e sistema imunológico2. Estudos recentes sugerem que o CBD é capaz de ativar moléculas importantes na função neural (PI3K e mTOR), impedindo convulsões graves ao evitar a atividade excessiva de neurônios, além de diminuir a inflamação e lesões cerebrais decorrentes de crises convulsivas por reduzir a ativação de células (micróglias) que atuam na defesa imune do sistema nervoso central3. As atividades farmacológicas atribuídas ao CBD conferem-lhe um grande potencial para utilização terapêutica uma vez que esse pode atuar como um agente neuroprotetor e antiepilético. Em 2018, a agência regulatória americana Food and Drug Administration (FDA), autorizou o uso terapêutico do CBD para tratamento de convulsões associadas a formas graves de epilepsia em pacientes a partir de um ano de idade4,5.
No Brasil, a lei 11.343 (Lei de Drogas), aprovada em 2006, prevê o plantio de Cannabis para fins medicinais e científicos. No entanto, a regulamentação do uso terapêutico teve início em 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou o CBD da lista de medicamentos proibidos e passou a classificá-lo na lista de substâncias controladas. Por meio da RDC n°17 de 2015, a Anvisa passou a autorizar a importação de medicamentos contendo CBD para tratamento de patologias como epilepsia, síndrome de Dravet, transtorno do espectro autista e enxaqueca crônica mediante prescrição médica quando as opções terapêuticas disponíveis fossem comprovadamente insuficientes9,10. A resolução não especifica padrões de registro ou segurança para produtos importados, que só foram estabelecidos em 2019 pela RDC n° 327 que define os critérios para a concessão da autorização sanitária para fabricação, importação, prescrição e dispensação de produtos à base Cannabis para fins terapêuticos11. A partir de 2020, o processo de autorização para importação foi simplificado pela RDC n° 660, que estabeleceu critérios e procedimentos para a importação de produtos por pessoa física para tratamento de saúde mediante prescrição de profissional legalmente habilitado12. Recentemente, o governo de São Paulo sancionou o projeto de lei que implementa a dispensação de medicamentos à base de CBD no Sistema Único de Saúde na rede estadual, que serão distribuídos a pacientes que possuem prescrição médica e comprovem não ter condições financeiras de adquirir o medicamento na rede privada13.
O avanço na regulamentação do uso terapêutico da Cannabis facilita o acesso a medicamentos antes importados e de alto custo, inacessíveis para a parcela menos favorecida da população. Além disso, estabelece critérios para a oferta de produtos padronizados reproduzíveis em concentrações controladas de insumo farmacêutico ativo (IFA), que além de permitir maior segurança na prescrição, contribui para o avanço na pesquisa científica sobre o tema. Todavia, a escassez de estudos clínicos controlados e randomizados e a falta de padronização dos ensaios atuais são fatores que contribuem para a baixa qualidade das evidências. São necessários novos estudos que demonstrem os benefícios e avalie a segurança e eficácia do CBD para diferentes condições clínicas. É importante destacar ainda que, como qualquer medicamento, o CBD não está isento de efeitos adversos e interações medicamentosas, devendo ser utilizado com cautela e acompanhamento médico apropriado.
Referências:
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- Pozzi, Sandro. EUA autorizam o primeiro medicamento feito a partir da maconha. El País, Nova York, 27 de junho de 2018. Cannabis. Disponível em:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/25/actualidad/1529952375_014000.html.
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- Gonçalves, Cléber. Alesp aprova e governo sanciona lei que garante medicamento à base de Cannabis no SUS de SP. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 31 de janeiro de 2023. Disponível em:https://www.al.sp.gov.br/noticia/?31/01/2023/alesp-aprova-e-governo-sanciona-lei-que-garante-medicamento-a-base-de-cannabis-no-sus-de-sp-