O que é Prática de Saúde Baseada em Evidências (PSBE) e por que muitos profissionais ainda não adotam esse modelo?

Editorial

Joyce Costa Melgaço de Faria

 

O conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE) surgiu na década de 1990 e consiste no cuidado fundamentado na aplicação da melhor evidência científica disponível, integrada à expertise do profissional, considerando os valores e preferências do paciente1,2. Esse conceito evoluiu e hoje é mais comumente denominado Prática de Saúde Baseada em Evidências (PSBE), de modo a envolver todas as profissões responsáveis pela atenção à saúde3. Embora a imprescindibilidade de incorporação dessa tríade (Figura 1) no exercício das profissões da área esteja cada vez mais evidente, ainda existem desafios a serem enfrentados para que consigamos alcançar esse ideal.

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Figura 1 – Tríade de elementos fundamentais da Prática de Saúde Baseada em Evidências

 

Tendo em vista que a PSBE é um modelo de prática reconhecido há cerca de trinta anos, é provável que muitos profissionais de saúde ainda atuantes não tiveram uma formação nesses moldes.  Assim, o maior desafio é fazer com que todos eles compreendam do que realmente se trata esse modelo e reconheçam a importância equivalente dos três elementos que o norteiam. É oportuno ressaltar que a PSBE não se vale somente da utilização da informação científica pura (como sua denominação nos induz a pensar), até porque essa nem sempre está disponível e não é aplicável a todos os contextos. Os resultados provenientes de pesquisas devem se integrar à experiência do profissional e à consideração dos desejos e vivências do paciente para definição de uma conduta adequada2. Porém, o acesso à literatura é provavelmente uma das principais dificuldades dos trabalhadores da área.

A limitação do acesso está associada desde à disponibilidade de internet, requisito básico para a busca de informação hoje em dia, até a assinatura de periódicos e bases de dados científicas (ex.: Micromedex, Dynamed, UptoDate), que são recursos que têm se tornado indispensáveis para obtenção de informação atualizada. Além disso, a questão do acesso também perpassa pela capacidade de leitura em outro idioma, já que a maior parte da literatura em saúde é produzida em língua inglesa, e a habilidade para interpretação de dados estatísticos básicos e análise crítica desses dados4,5,6. Como recursos essenciais não estão disponíveis para todos e a formação dos profissionais atuantes na assistência é assimétrica, as dificuldades para implantação da PSBE são um reflexo de outras desigualdades marcantes de nossa sociedade.

As barreiras para a busca e interpretação de material científico contribuem para à priorização da experiência clínica como elemento para a tomada de decisões, o que ocorre principalmente pelo compartilhamento de vivências entre colegas6. Embora esse seja um aspecto fundamental na definição de condutas em saúde, é importante ressaltar que experiências isoladas podem não refletir os resultados de pesquisas controladas, que demonstram os efeitos da aplicação de uma intervenção (ex.: medicamento) em amostras populacionais expressivas. A desconsideração desses resultados em prol da valorização exclusiva da vivência profissional pode levar a falhas no processo de cuidado. Um exemplo de falha seria a monitorização inadequada de um paciente em uso de medicamento devido à crença equivocada de que determinadas reações adversas não existem porque nunca se ouviu relatos delas durante anos de atuação clínica. Esse é um tipo de falácia a ser evitado quando os três componentes da tríade da PSBE são assimilados e tomados como essenciais na assistência à saúde.

Por fim, cabe discutir sobre os impasses relacionados ao terceiro sustentáculo do trio, que determina o respeito aos valores e preferências do paciente. Apesar de alguns profissionais entenderem como antagônicas as propostas de aplicação da recomendação científica e de cuidado centrado no paciente, considerando a primeira como uma tendência de padronização e universalização das condutas e a segunda direcionada à personalização da assistência, essas duas ideias devem ser sempre complementares. Tal complementariedade se dá quando as possibilidades de tratamento baseadas em evidências são apresentadas ao paciente e ele é empoderado para tomar a decisão. Certamente, realizar essa conciliação não é uma tarefa simples, uma vez que requer do profissional de saúde uma apurada capacidade de diálogo e habilidade para lidar com situações em que há discrepância entre as crenças e desejos do paciente e as medidas comprovadas como eficazes. Para superar essa dificuldade, é necessário não só empenho dos profissionais, mas também a ampliação da educação em saúde da população em geral e o engajamento das instituições de assistência para treinamento contínuo de seus funcionários, fortalecimento do trabalho em equipe interprofissional e estabelecimento de cultura organizacional direcionada à PSBE7.

Como partidário da PSBE, o Cemed encerra mais um ano tendo realizado uma série de trabalhos que convergem nesse sentido, visando a melhor formação de profissionais de saúde e à educação de pacientes para o autocuidado. Além da continuação dos projetos de pesquisa (áreas: HIV e análise da evidência sobre o uso do metilfenidato), da realização dos seminários, das publicações do blog e das dúvidas sobre medicamentos respondidas por meio do serviço “Pergunte ao Cemed”, nos orgulha destacar algumas atividades que marcaram o ano de 2019:

  • participação na Semana BH Educa, em parceria com a prefeitura de Belo Horizonte-MG;
  • participação e apresentação de trabalhos em eventos científicos (Semana do Conhecimento da UFMG, Colloquium Cochrane, Simbravisa e Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos);
  • consolidação do grupo de pesquisa sobre esquemas de tratamento do mieloma múltiplo, em parceria com a Fundação Ezequiel Dias e mais três centros de tratamento onco-hematológico, sendo dois da rede pública e um da rede privada;
  • produção e exibição do vídeo de divulgação dos serviços do Cemed na fachada digital do Espaço do Conhecimento da UFMG (Praça da Liberdade), como parte da programação do UFMG Acontece;
  • coordenação do projeto de pesquisa para análise da evidência sobre as estratégias para aumentar a testagem para HIV entre homens que fazem sexo com homens, travestis e mulheres trans, com auxílio financeiro do DIAHV-Ministério da Saúde e CNPq;
  • criação de projetos de extensão em parceria com o Centro de Estudos em Atenção Farmacêutica, a serem executados nos próximos semestres, tendo como objetivo fornecer suporte e educação continuada para farmacêuticos.

Como perspectiva para 2020, pretendemos dar continuidade aos nossos trabalhos e, como representantes resilientes da universidade pública, reafirmamos o nosso compromisso de apoiar estudantes e profissionais na Prática de Saúde Baseada em Evidências! Desejamos a todos um feliz natal e que o ano novo seja repleto de paz e realizações!

 

Referências:

  1. Chiappelli F; Brant XMC; Negoita N; Oluwadara OO; Ramchandani MH, editores. Evidence-Based Practice: Toward Optimizing Clinical Outcomes. Berlin: Springer; 2010
  2. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996 jan 13; 312(7023):71-2.
  3. Petersen A. Hope in Health: The Socio-Politics of Optimism. Palgrave Macmillan UK, 2015. p. 50-52.
  4. Pereira RPG, Cardoso MJdSPdO, Martins MACdSC. Atitudes e barreiras à prática de enfermagem baseada na evidência em contexto comunitário. Revista de Enfermagem Referência. 2012;serIII:55-62.
  5. Al Ghabeesh SH, Barriers and Suggested Facilitators to the Implementation of Best Practice: An Integrative Review. Open Journal of Nursing, 2015, 5, 77-87
  6. Schneider LR, Pereira RPG, Ferraz L. A prática baseada em evidência no contexto da Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate. 2018;42:594-605.
  7. Engle RL, Mohr DC, Holmes SK, Seibert MN, Afable M, Leyson J, et al. Evidence-based practice and patient-centered care: Doing both well. Health Care Management Review.

As tênues linhas demarcatórias dos campos de atuação na área da saúde: o caso da farmácia

Editorial 

por Edson Perini e Joyce Melgaço

 

Volta e meia somos confrontados com dilemas provocados pelos conflitos resultantes da tênue linha demarcatória dos campos de atuação dos diversos profissionais da área da saúde. Se nos voltarmos para a jornada histórica de formação e consolidação social de cada uma, algumas milenares em sua formação, outras bastante recentes na história, aceitaremos facilmente como normal a existência desses conflitos. Afinal, todas evoluíram do mesmo tronco, mesmo que sob diferentes formas culturais. Mas essa compreensão não nos ajuda muito no momento, ainda que importante para nossa compreensão da milenar ideia de cuidar dos que precisam manter ou recuperar um de seus bens mais caros – a saúde.

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Fonte: Google Imagens

Podemos tentar compreender a existência desses conflitos sob dois aspectos mais contemporâneos, ambos ligados ao mercado de trabalho. Um se refere à reserva de funções que garantem o espaço corporativo de cada profissional nas sociedades modernas, estabelecido em normas legais específicas. Outro nos leva aos conceitos fundamentais que sustentam a primazia dessa reserva, e a defesa corporativa sobre o direito que cada uma tem de mantê-la como habilidades exclusivas. Nesse último caso, tal defesa não decorre propriamente da primazia histórica de sua atuação, mas tenta invariavelmente se afirmar na formação de habilidades que a experiência histórica da atuação de cada profissão lhes permitiu e pelo caráter fundante dos conceitos em sua identidade profissional. Esse caráter de fundamento identitário é aquele que une a corporação sob uma denominação significativa para sua profissão, e que a identifica perante a sociedade.

As últimas décadas trouxeram a nós farmacêuticos alguns exemplos importantes. Na década de 1970 fomos confrontados com a formação e posterior regulamentação da Biomedicina, talvez a profissão mais recente na história da área de saúde. Para nós o fato era uma agressão ao Farmacêutico e iria tomar seu espaço de trabalho na sociedade, conquistado com competência nas décadas anteriores. Feria nosso espaço e entrava em um conceito fundamental nosso, as análises clínicas de apoio ao diagnóstico, e acreditamos nisso. Os estudantes foram mobilizados e temiam ver todo o esforço de profissionalização ameaçado pela sanha dos interesses privados que dominavam a formação na área da biomedicina. Não havia nenhuma discussão sobre o conceito das análises clínicas como atividade profissional, suas origens e o empoderamento histórico do Farmacêutico na área. A discussão se resumia simplesmente em acreditar que éramos o profissional do medicamento, do alimento e das análises clínicas. Na época, basicamente desta última, uma vez que alimentos se mostrava uma área marginal e o medicamento uma área em abandono. Não passou muito tempo para formarmos algum nível de consciência sobre algo errado nessa crença. Hoje isso é cristalino para uma parcela razoável da corporação. Análises clínicas não é uma área privativa nossa, tampouco um conceito que funda nossa identidade simplesmente porque historicamente fomos levados a ela por competência. Como outros profissionais que atuam na área, não se refere a um conceito marcado nessa história como uma identidade científica, profissional e social exclusiva.

Posteriormente, vivemos os conflitos gerados pelo chamado Ato Médico. Acostumada a ser o centro da assistência à saúde, a corporação médica não se preocupou muito em estabelecer legalmente uma área de atuação privativa para seus membros. Quando o fez, muitas outras profissões mais recentes na história haviam se consolidado e formou-se enorme polêmica. E como toda polêmica, razões não faltaram a todos os envolvidos: os médicos tinham o direito de estabelecer seu campo profissional de maneira legal, e a atenção ao paciente, envolvendo o diagnóstico de doenças, a prescrição de tratamentos e a interferência invasiva em seus corpos são, sem dúvida, conceitos cruciais na sua identidade. Porém, isso se deu em um momento histórico de forte reconhecimento dessa mesma atenção como obra de uma equipe multiprofissional, e muitas atividades são reivindicadas por diversos profissionais. Inclusive os farmacêuticos, que já buscavam consolidar sua atuação na prescrição de medicamentos.

E surge o conflito da prescrição farmacêutica. Uma atividade recentemente legalizada por normatização do conselho de classe. Óbvio que o conceito é muito caro aos médicos, porque historicamente desenvolvido por eles e intimamente conectado a outro, o diagnóstico. Assim, desde que invoque a si o direito de prescrever, o farmacêutico deve obrigatoriamente se responsabilizar por uma ação diagnóstica. Mas essa polêmica, embora séria e profunda, dispõe de uma âncora legal que permite definições claras: a corporação médica sempre aceitou a existência de medicamentos no mercado que dispensam a sua autorização de uso, ou seja, sua prescrição. E tais medicamentos, chamados “medicamentos isentos de prescrição – MIP” (sin. “medicamentos OTC” – over-the-counter, “medicamentos não tarjados”), sempre estiveram muito ligados e sob controle do farmacêutico. Dessa forma, ao invocar a prescrição de tais medicamentos, o farmacêutico não apenas não interfere na ação dos médicos, ainda que avance em um conceito que é muito caro a sua corporação, mas também pode invocar um grande serviço à população no controle de um problema sério, a automedicação. Assim, os médicos, ainda que defendendo um conceito caro à sua identidade, perdem razões na legalidade do mercado por aceitar historicamente um fato que à luz da ciência moderna pode parecer bizarro.

E agora surge a mais nova polêmica: em junho deste ano, o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) publicou parecer afirmando que a dispensação de medicamentos no âmbito dos dispensários não é atividade privativa do farmacêutico, podendo ser exercida por enfermeiros. Define-se dispensário o setor de fornecimento de medicamentos industrializados lotado em unidade hospitalar de pequeno porte (menos de 50 leitos) ou equivalente1. Em resposta ao parecer do COFEN, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) lançou uma nota de esclarecimento reiterando que a atividade de dispensação de medicamentos é privativa do farmacêutico, mesmo no âmbito dos dispensários, conforme determinação da Lei Federal nº 13.021/14, que dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas2.

Inicialmente é necessário distinguir bem a dispensação da administração, esta última claramente uma ação muito ligada à ação da enfermagem e que muitas vezes pode gerar uma confusão conceitual com a primeira. Quando a enfermagem toma para si um medicamento e promove sua administração, é preciso ter claro que uma ação de dispensação já foi realizada anteriormente. Esta ação é muitas vezes incompreendida porque é vista como uma mera entrega de um produto sob guarda e responsabilidade do Farmacêutico a um terceiro, seja o paciente ou outro profissional de saúde. Porém, ela envolve uma complexidade desconhecida pelos imperitos na área, conformando uma ação com responsabilidades técnicas, científicas, legais, econômicas e sociais, que se complexifica cada vez mais em nossas sociedades modernas, especialmente nas instituições hospitalares e nos sistemas públicos de atenção ambulatorial. E com possibilidades de consequências perigosas para os pacientes. A literatura cientifica mais atual demonstra isso fartamente. A dispensação, atribuição privativa do Farmacêutico, não se difere fundamentalmente entre os estabelecimentos onde ela ocorre, tampouco se difere com relação ao porte desses estabelecimentos.

Por seu turno, a compreensão da dispensação como um conceito que transcende a entrega do medicamento, associada ao incremento na sua complexidade, impulsionou o desenvolvimento da atuação clínica do farmacêutico, ampliando seu campo de atuação e levando ao alcance de algumas fronteiras que delimitam o escopo de atuação de outros profissionais da saúde. Nesse sentido, recordamos que a recente resolução da Anvisa (RDC Nº 197, de 26 de dezembro de 2017)3 regulamentou a administração de vacinas em farmácias e drogarias, o que está ligado ao reconhecimento desses estabelecimentos como unidades de saúde. O texto da resolução não define a incumbência do procedimento a um profissional específico, o que não é prerrogativa da Anvisa, mas ficou subtendido que será do responsável técnico pelo estabelecimento, obrigatoriamente um Farmacêutico, o qual possui formação para tal habilidade. Em resposta, os Conselhos Federal de Enfermagem e Medicina publicaram manifestações contrárias, alertando para os possíveis riscos da administração de vacinas em farmácias e drogarias4,5.

Conforme mencionado, esses imbróglios não são novidade no histórico de delineamento da abrangência das profissões. No entanto, debates que deveriam se pautar em argumentos racionais, técnico-científicos e legais, e na perspectiva do melhor interesse de quem usa os serviços de saúde, acabam se transformando em argumentações rasas, propelidas por aspectos emocionais e o desejo de reserva de mercado. Isso acaba levando ao acirramento de rivalidades entre profissões da área da saúde, que em nada contribui para o fortalecimento das equipes multiprofissionais e a conversão de esforços para a promoção da saúde da população.

Ao analisar os conflitos passados, constatamos que a consolidação da experiência do profissional com uma determinada atribuição e o reconhecimento de seu papel pela sociedade são os motores que arrematam as divergências. Sendo assim, cabe aos Farmacêuticos cumprir com excelência o seu ofício para atender ao paciente/usuário do medicamento, solidificar a sua atuação nos campos conquistados e alcançar a amplificação do seu reconhecimento social.

 

Referências:

  1. Conselho Federal de Enfermagem. Parecer de Conselheira Relatora nº 145/2018 [Internet] [acesso em 11 jul 2018]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/parecer-de-conselheira-relatora-n-145-2018_63578.html
  2. Conselho Federal de Farmácia. Dispensação de medicamentos é ato privativo do farmacêutico. [Internet] [acesso em 11 jul 2018]. Disponível em: http://www.cff.org.br/userfiles/file/Dispensa%C3%A7%C3%A3o%20de%20medicamentos%20%C3%A9%20ato%20privativo%20do%20farmac%C3%AAutico%20-%20nota%20na%20%C3%ADntegra.pdf
  3. Diário Oficial da União. RDC Nº 197, de 26 de dezembro de 2017. Ed. 248, Seção 1, p. 58-59. [Internet] [acesso em 11 jul 2018]. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=28/12/2017&jornal=515&pagina=58&totalArquivos=214
  4. Conselho Federal de Enfermagem. Nota pública sobre administração de vacinas em farmácias. 13/12/2017. [Internet] [acesso em 11 jul 2018]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/nota-publica-sobre-administracao-de-vacinas-em-farmacias_59286.html
  5. Conselho Federal de Medicina. Nota aos brasileiros. CFM contra vacinação em farmácias e drogarias. 14/12/2017. [Internet] [acesso em 11 jul 2018]. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/images/PDF/anvisa_vacinas.pdf