O que aprendemos com a pandemia de Covid-19?

Editorial

por Paula Drummond e Joyce Melgaço

 

Vivemos uma pandemia causada por um vírus novo, cuja origem ainda não conhecemos bem e para o qual ainda não temos vacina e nem tratamento medicamentoso específico para a doença. Isso nos traz medo, ansiedade, incertezas e muitas preocupações. Todos os dias surgem novos fatos, novos estudos, diversas reportagens e afirmações de pessoas influentes (da área da saúde ou não). Essa enxurrada de informações parece mais confundir do que esclarecer.

Nesse cenário, as maiores fontes de informações para a população parecem ser os aplicativos de mensagem e as redes sociais. Por estes meios, as informações circulam em velocidade impressionante, podendo dar a volta ao mundo em menos de um dia. Contudo, a origem destas informações raramente é verificada e pode não ser confiável, sendo o conteúdo considerado “fake news”. Já para os profissionais de saúde, é impraticável ler e avaliar de forma crítica todas as publicações científicas que têm sido produzidas neste momento. Alguns trabalhos, inclusive, têm sido divulgados antes mesmo de serem formalmente avaliados e publicados nas revistas científicas. Nesse cenário, o trabalho dos Centros de Informação sobre Medicamentos (CIMs), como o Cemed,  torna-se ainda mais importante, como reforçado em publicação recente do Ministério da Saúde, intitulado Centros e Serviços de Informação sobre Medicamentos: princípios, organização, prática e trabalho em redes para promoção do uso racional de medicamentos.

Apesar de compreendermos a importância da nossa missão nesse momento, para nós, equipe do Cemed, também não foi fácil lidar com as angústias inerentes ao contexto da pandemia. Deixar a sala 3111 da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vazia, sem saber quando voltaríamos a poder sentar juntos na mesa de reuniões foi uma tristeza que somou-se aos desafios que encontramos na fase inicial de organização das atividades em home office. Aos poucos, fomos entendendo que, embora a saudade do contato presencial seja irreparável, é possível manter uma comunicação efetiva à distância e estamos aprendendo a conciliar as nossas demandas domésticas, familiares e profissionais no mesmo ambiente.

Foto editorial

Assim, o primeiro semestre de 2020 foi um semestre diferenciado, porém, muito produtivo. Como saldo, tivemos 39 materiais informativos publicados nas redes sociais, cinco textos para o blog, 16 perguntas respondidas no serviço Pergunte ao Cemed, duas notas técnicas produzidas em conjunto com outros CIMs, duas entrevistas para a TV UFMG e um seminário com número recorde de espectadores (realizado antes da suspensão das atividades presenciais na universidade).  Nas 13 reuniões virtuais realizadas, buscamos aperfeiçoar a análise crítica da literatura científica sobre a COVID-19 e o mérito das nossas produções foi reconhecido pela concessão de duas bolsas de extensão da UFMG, o que contribuiu para ampliar e consolidar a equipe do Cemed. Um pouco do nosso trabalho foi também apresentado em uma das lives da Faculdade de Farmácia da UFMG. Demos também continuidade às atividades de pesquisa nas áreas do metilfenidato, mieloma múltiplo e HIV.

Embora reconheçamos que nosso trabalho seja pequeno frente à imensidão de informações circulantes na internet, resistimos em ocupar os espaços virtuais para popularizar a informação científica em saúde e estreitar o contato entre os meios acadêmicos, os profissionais de saúde e a população. Por isso, acreditamos que, de nossa parte, mantemos erguido o tripé ensino, pesquisa e extensão e contribuímos para a formação de profissionais de saúde diferenciados. Agradecemos a todos que nos apoiam e nos acompanham nessa jornada e comunicamos que estaremos de recesso nas próximas semanas. Em agosto, retornaremos com novas publicações!  Até lá, continuem acompanhando nossas redes sociais e conheçam a equipe que faz o trabalho do Cemed acontecer!

O que é Prática de Saúde Baseada em Evidências (PSBE) e por que muitos profissionais ainda não adotam esse modelo?

Editorial

Joyce Costa Melgaço de Faria

 

O conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE) surgiu na década de 1990 e consiste no cuidado fundamentado na aplicação da melhor evidência científica disponível, integrada à expertise do profissional, considerando os valores e preferências do paciente1,2. Esse conceito evoluiu e hoje é mais comumente denominado Prática de Saúde Baseada em Evidências (PSBE), de modo a envolver todas as profissões responsáveis pela atenção à saúde3. Embora a imprescindibilidade de incorporação dessa tríade (Figura 1) no exercício das profissões da área esteja cada vez mais evidente, ainda existem desafios a serem enfrentados para que consigamos alcançar esse ideal.

psbe

Figura 1 – Tríade de elementos fundamentais da Prática de Saúde Baseada em Evidências

 

Tendo em vista que a PSBE é um modelo de prática reconhecido há cerca de trinta anos, é provável que muitos profissionais de saúde ainda atuantes não tiveram uma formação nesses moldes.  Assim, o maior desafio é fazer com que todos eles compreendam do que realmente se trata esse modelo e reconheçam a importância equivalente dos três elementos que o norteiam. É oportuno ressaltar que a PSBE não se vale somente da utilização da informação científica pura (como sua denominação nos induz a pensar), até porque essa nem sempre está disponível e não é aplicável a todos os contextos. Os resultados provenientes de pesquisas devem se integrar à experiência do profissional e à consideração dos desejos e vivências do paciente para definição de uma conduta adequada2. Porém, o acesso à literatura é provavelmente uma das principais dificuldades dos trabalhadores da área.

A limitação do acesso está associada desde à disponibilidade de internet, requisito básico para a busca de informação hoje em dia, até a assinatura de periódicos e bases de dados científicas (ex.: Micromedex, Dynamed, UptoDate), que são recursos que têm se tornado indispensáveis para obtenção de informação atualizada. Além disso, a questão do acesso também perpassa pela capacidade de leitura em outro idioma, já que a maior parte da literatura em saúde é produzida em língua inglesa, e a habilidade para interpretação de dados estatísticos básicos e análise crítica desses dados4,5,6. Como recursos essenciais não estão disponíveis para todos e a formação dos profissionais atuantes na assistência é assimétrica, as dificuldades para implantação da PSBE são um reflexo de outras desigualdades marcantes de nossa sociedade.

As barreiras para a busca e interpretação de material científico contribuem para à priorização da experiência clínica como elemento para a tomada de decisões, o que ocorre principalmente pelo compartilhamento de vivências entre colegas6. Embora esse seja um aspecto fundamental na definição de condutas em saúde, é importante ressaltar que experiências isoladas podem não refletir os resultados de pesquisas controladas, que demonstram os efeitos da aplicação de uma intervenção (ex.: medicamento) em amostras populacionais expressivas. A desconsideração desses resultados em prol da valorização exclusiva da vivência profissional pode levar a falhas no processo de cuidado. Um exemplo de falha seria a monitorização inadequada de um paciente em uso de medicamento devido à crença equivocada de que determinadas reações adversas não existem porque nunca se ouviu relatos delas durante anos de atuação clínica. Esse é um tipo de falácia a ser evitado quando os três componentes da tríade da PSBE são assimilados e tomados como essenciais na assistência à saúde.

Por fim, cabe discutir sobre os impasses relacionados ao terceiro sustentáculo do trio, que determina o respeito aos valores e preferências do paciente. Apesar de alguns profissionais entenderem como antagônicas as propostas de aplicação da recomendação científica e de cuidado centrado no paciente, considerando a primeira como uma tendência de padronização e universalização das condutas e a segunda direcionada à personalização da assistência, essas duas ideias devem ser sempre complementares. Tal complementariedade se dá quando as possibilidades de tratamento baseadas em evidências são apresentadas ao paciente e ele é empoderado para tomar a decisão. Certamente, realizar essa conciliação não é uma tarefa simples, uma vez que requer do profissional de saúde uma apurada capacidade de diálogo e habilidade para lidar com situações em que há discrepância entre as crenças e desejos do paciente e as medidas comprovadas como eficazes. Para superar essa dificuldade, é necessário não só empenho dos profissionais, mas também a ampliação da educação em saúde da população em geral e o engajamento das instituições de assistência para treinamento contínuo de seus funcionários, fortalecimento do trabalho em equipe interprofissional e estabelecimento de cultura organizacional direcionada à PSBE7.

Como partidário da PSBE, o Cemed encerra mais um ano tendo realizado uma série de trabalhos que convergem nesse sentido, visando a melhor formação de profissionais de saúde e à educação de pacientes para o autocuidado. Além da continuação dos projetos de pesquisa (áreas: HIV e análise da evidência sobre o uso do metilfenidato), da realização dos seminários, das publicações do blog e das dúvidas sobre medicamentos respondidas por meio do serviço “Pergunte ao Cemed”, nos orgulha destacar algumas atividades que marcaram o ano de 2019:

  • participação na Semana BH Educa, em parceria com a prefeitura de Belo Horizonte-MG;
  • participação e apresentação de trabalhos em eventos científicos (Semana do Conhecimento da UFMG, Colloquium Cochrane, Simbravisa e Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos);
  • consolidação do grupo de pesquisa sobre esquemas de tratamento do mieloma múltiplo, em parceria com a Fundação Ezequiel Dias e mais três centros de tratamento onco-hematológico, sendo dois da rede pública e um da rede privada;
  • produção e exibição do vídeo de divulgação dos serviços do Cemed na fachada digital do Espaço do Conhecimento da UFMG (Praça da Liberdade), como parte da programação do UFMG Acontece;
  • coordenação do projeto de pesquisa para análise da evidência sobre as estratégias para aumentar a testagem para HIV entre homens que fazem sexo com homens, travestis e mulheres trans, com auxílio financeiro do DIAHV-Ministério da Saúde e CNPq;
  • criação de projetos de extensão em parceria com o Centro de Estudos em Atenção Farmacêutica, a serem executados nos próximos semestres, tendo como objetivo fornecer suporte e educação continuada para farmacêuticos.

Como perspectiva para 2020, pretendemos dar continuidade aos nossos trabalhos e, como representantes resilientes da universidade pública, reafirmamos o nosso compromisso de apoiar estudantes e profissionais na Prática de Saúde Baseada em Evidências! Desejamos a todos um feliz natal e que o ano novo seja repleto de paz e realizações!

 

Referências:

  1. Chiappelli F; Brant XMC; Negoita N; Oluwadara OO; Ramchandani MH, editores. Evidence-Based Practice: Toward Optimizing Clinical Outcomes. Berlin: Springer; 2010
  2. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996 jan 13; 312(7023):71-2.
  3. Petersen A. Hope in Health: The Socio-Politics of Optimism. Palgrave Macmillan UK, 2015. p. 50-52.
  4. Pereira RPG, Cardoso MJdSPdO, Martins MACdSC. Atitudes e barreiras à prática de enfermagem baseada na evidência em contexto comunitário. Revista de Enfermagem Referência. 2012;serIII:55-62.
  5. Al Ghabeesh SH, Barriers and Suggested Facilitators to the Implementation of Best Practice: An Integrative Review. Open Journal of Nursing, 2015, 5, 77-87
  6. Schneider LR, Pereira RPG, Ferraz L. A prática baseada em evidência no contexto da Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate. 2018;42:594-605.
  7. Engle RL, Mohr DC, Holmes SK, Seibert MN, Afable M, Leyson J, et al. Evidence-based practice and patient-centered care: Doing both well. Health Care Management Review.