Pandemia Covid-19: o fim não está próximo!

por Edson Perini

Quem dirige em estrada sabe que os maiores riscos estão na parte final da viagem. Cansados, nos distraímos facilmente; ansiosos, pisamos mais fundo no acelerador. Esse risco é diretamente proporcional ao tamanho da viagem. Essa pode ser uma metáfora interessante para o momento que vivemos da pandemia de Covid-19 no Brasil. Bastou um leve descenso na curva, e lá vamos nós com praias lotadas, bares em alvoroço, comércio eufórico. Juntando isso a um discurso negacionista que os setores governamentais e seus satélites mantém, temos um caldeirão de onde qualquer poção mágica pode ser esperada.

Sequer vencemos a euforia da cloroquina, assistimos a da ivermectina, seguida de tantas outras promessas milagrosas. E agora convivemos com autoridades aflitas por uma vacina, desatentas à história da ciência que nos recomenda cautela. Até o início de setembro a OMS não apostava suas fichas na vacinação em massa para antes de meados de 2021. Hoje temos pelo menos nove promessas de vacinas em teste, em diferentes estágios. É preciso salientar que ser eficaz não significa ser segura. Reações autoimune são possíveis. Um diagnóstico de mielite transversa, síndrome inflamatória que afeta a medula espinhal, foi anunciado em um voluntário dos testes em uma dessa vacinas, que felizmente não passou de um susto. E os russos nos assustam com um futuro promissor em testes de Fase I e II com alguns caraminguás, que a bem da verdade formariam uma boa casuística para a Fase I. Tudo isso não deve nos paralisar, mas precisamos entender o momento que vivemos. A ciência tem avançado em uma velocidade nunca vista, mas é preciso segurança em seus resultados. E torcer para que, se avançarmos algum sinal vermelho, que a farmacovigilância (sin. estudos de fase IV, pós-comercialização) nos permita corrigir oportunamente e evitar danos maiores ao chamado “mundo real”, o uso em larga escala posterior à liberação dos produtos.

Quanto tempo leva para desenvolver uma vacina? Essa é uma pergunta difícil de responder. Muitos fatores influenciam no andamento das pesquisas, mas se desconsiderarmos as primeiras fases, a pré-clínica, em animais, e as fases I e II da fase clínica (em humanos, porém com número relativamente pequeno de voluntários), a Fase III dificilmente é desenvolvida em menos de um ano. Entra em jogo, além de questões logísticas e do tempo necessário de observação, a plataforma de seu desenvolvimento. As vacinas ditas de terceira geração, essas que usam material genético do agente causal da doença, possibilitaram uma redução substancial no tempo de produção e desenvolvimento da vacina e sua investigação em relação àquelas de primeira geração (com os agentes vivos atenuados ou mortos) e de segunda geração (com os agentes fragmentados). Mas não existe bola de cristal na ciência, e as previsões devem ser baseadas em evidências bem fundadas.

Assim, por mais que os investimentos sejam vultosos, que a tecnologia de produção tenha se desenvolvido e que o interesse político pressione, resultando em uma tramitação burocrática extremamente curta da liberação ética, registro da pesquisa e dos produtos finais, a Fase III envolve o cumprimento de vários quesitos: produção e distribuição de todo o material necessário para muitos centros de pesquisa em diferentes países onde a vacina será testada, recrutamento de milhares de voluntários, aplicação de uma ou duas doses em intervalos definidos, acompanhamento médico rigoroso e por um tempo longo o bastante para detectar possíveis reações que possam surgir de forma não imediata, testagem laboratorial dos efeitos da vacina sobre o sistema imunológico e, finalmente, um tempo viável para que tenhamos dados confiáveis sobre a exposição ao vírus e desenvolvimento da doença de forma suficiente para as análises estatísticas que nos trarão à luz a matemática da eficácia e da segurança. Sem isso, tudo pode dar certo. Mas não deixa de ser uma aventura. Afinal, mesmo depois de testados com muita segurança, os medicamentos e vacinas podem nos apresentar surpresas após seu uso em grandes populações. Isso a ciência tem muito bem documentado, e nossa memória ainda guarda o medo de algumas tragédias.

Ao todo, das primeiras fases até a conclusão da Fase III, um prazo de três a quatro anos não seria de se espantar. Se reduzirmos isso à metade em função de todo o esforço, apoio e pressão política que vivemos com a Covid-19, antever uma vacina com a eficácia e a segurança bem conhecidas antes do segundo semestre de 2021, como aposta a OMS, nos traz uma sensação de utopia. E precisamos acreditar que os governos já estejam preparando os esforços para a produção de milhões de seringas, agulhas, frascos, caixas térmicas, gelo artificial para manutenção das vacinas nas caixas térmicas (sim, afinal precisamos pensar nas populações mais afastadas, correto?). Não se faz isso do dia para a noite. Toda essa logística, em um verdadeiro esforço de guerra, consumirá uns seis meses ou mais, pois quando falamos milhões, são muitos milhões. Ou as populações mais afastadas dos grandes centros terão que esperar um tempo muito maior que os moradores dos grandes centros detentores dos meios de produção e do poder político. Todos nós queremos uma solução, afinal estamos cansados e com medo. Mas uma tragédia com uma vacina pouco conhecida é tudo o não queremos em um cenário já de grandes desafios para se manter os altos índices de vacinação para as demais enfermidades que o mundo, e o Brasil em grande destaque, conquistou a duras penas, com o trabalho dos sistemas públicos, diga-se, para não deixar dúvidas nesses tempos de desmonte de nossas conquistas sociais.

OMS alerta sobre a proximidade de uma era pós-antimicrobianos

Por Mariana Colen

A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório com foco em um tema de grande importância: a resistência aos antimicrobianos*1. Apesar do assunto ser discutido há décadas, o Relatório Global de Vigilância em Resistência Antimicrobiana, publicado em 2014, evidencia a possibilidade de nos depararmos brevemente com uma era pós-antimicrobianos. Nesse contexto, infecções comuns e pequenas lesões poderiam levar indivíduos a óbito, pois não seria possível eliminar os microrganismos antes susceptíveis aos medicamentos, sobretudo as bactérias. Esse cenário era, até então, considerado somente uma possibilidade. No entanto, a “era pós-antibiótico”, como denominada pela OMS, pode estar mais perto do que pensávamos2.

A resistência aos antimicrobianos surge devido a mutações que ocorrem nos microrganismos e pela pressão seletiva induzida pelo uso excessivo desses medicamentos, entre outros mecanismos3. Nesse contexto, os microrganismos mutantes adquirem certa vantagem em relação aos demais. O uso de antimicrobianos em doses subterapêuticas também contribui para a pressão seletiva4. Como resultado, há redução da eficácia de fármacos antibacterianos, antiparasitários, antivirais e antifúngicos, o que pode tornar o tratamento muito complexo.

Fonte: Cemed UFMG

Fonte: Cemed UFMG

O impacto desse fenômeno em indivíduos com a saúde vulnerável é evidente, resultando no prolongamento da doença e aumento de mortalidade2. Infecções por microrganismos resistentes aos antimicrobianos representam maior custo em relação às infecções por organismos susceptíveis, já que fármacos mais efetivos contra determinados microrganismos e que foram desenvolvidos recentemente são em geral mais caros que os tradicionais. O aumento do custo também se relaciona com a necessidade de maior tempo de hospitalização por pacientes infectados por microrganismos resistentes3.

Estima-se que cerca de 25 mil pessoas vão a óbito a cada ano na Europa devido a infecções por bactérias resistentes a antibióticos. Um estudo realizado entre 1991 e 2012 no Reino Unido evidenciou falha terapêutica em pelo menos um em dez tratamentos iniciais com antimicrobianos em infecções comuns5. Já nos Estados Unidos, infecções por bactérias do tipo invasivas classificadas como “Staphylococcus aureus resistente à meticilina” (MRSA) levaram a 94 mil hospitalizações e foram associadas a 19 mil mortes em 20054.

A revisão regular dos protocolos de tratamento nas unidades de saúde, a implementação de rotinas básicas de higiene nos hospitais, o diagnóstico rápido de patógenos em infecções e sua susceptibilidade aos antibióticos são medidas essenciais e urgentes a serem tomadas para mudar esse contexto. Além disso, para reduzir a demanda por antibióticos, campanhas educacionais para conscientização tanto de profissionais de saúde como da população em geral devem ser realizadas. Todos os esforços devem ser direcionados para que seja vencido o desafio da iminente era pós-antimicrobianos4.

*Nota: Os antimicrobianos são substâncias naturais (antibióticos) ou sintéticas (quimioterápicos) que agem sobre microrganismos, inibindo seu crescimento ou causando sua destruição1.

 

REFERÊNCIAS
1 Mota, L.M. et al. Uso racional de antimicrobianos. Medicina (Ribeirão Preto). 2010; 43(2): 164-72. Acesso em 14 de Novembro de 2014. Disponível em http://revista.fmrp.usp.br/2010/vol43n2/Simp8_Uso%20racional%20de%20antimicrobianos.pdf.
2 Antimicrobial Resistance. Global Report on surveillance. World Health Organization. Acesso em 17 de Junho de 2014. Disponível em http://www.who.int/drugresistance/documents/surveillancereport/en/.
3 Corrêa, L.; Silva, E.U. Uso racional de antimicrobianos e a resistência microbiana. Acesso em 31 de Outubro de 2014. Disponível em http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/controle/rede_rm/cursos/atm_racional/modulo1/objetivos.htm.
4 Laxminarayan, R.; Duse, A. et al. Antibiotic resistance – the need for global solutions. Lancet Infect Dis. 2013; 13:1057-98.
5 Currie, C.J. et al. Antibiotic treatment failure in four common infections in UK primary care 1991-2012: longitudinal analysis. BMJ. 2014; 349: 1-13.