Helena Sclauser, Pedro Verzani e Letícia Penna (atualização: 14/12/2023)
por Nathália Pacífico de Carvalho (texto original: 21/09/2017)
Ao longo dos últimos 40 anos, as características da epidemia de HIV/Aids foram transformadas significativamente. De acordo com o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), os números de novos casos de HIV por ano em todo o mundo diminuíram 38%, de 2,1 milhões de novos casos em 2010 para 1,3 milhão em 20221. Especificamente no Brasil, a redução observada entre os anos de 2019 e 2022 foi de 11%2. A ampliação do acesso à terapia antirretroviral (TARV) é um importante fator associado à redução de novos casos de infecção pelo HIV3.
A profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV é uma intervenção biomédica que está inserida no contexto da prevenção combinada recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 20124. O método consiste na utilização de medicamentos antirretrovirais por pessoas que não vivem com HIV a fim de reduzir o risco de infecção pelo vírus. A PrEP é disponibilizada no Brasil de forma gratuita pelo SUS desde 2017 por meio do comprido de uso oral na dose fixa combinada de tenofovir e entricitabina. O tenofovir e a entricitabina juntos agem inibindo a transcrição do RNA viral do HIV em DNA viral. Essa transcrição de material genético ocorre, a princípio, no citoplasma das células T CD4, através de uma enzima denominada transcriptase reversa. O DNA viral de fita dupla produzido, adentra o núcleo celular e interage com o DNA da célula hospedeira. A partir desse momento, o vírus passa a controlar a síntese celular, iniciando, no núcleo da célula, a produção de RNA mensageiro viral. Os RNAs mensageiros serão utilizados na síntese das proteínas e do genoma viral. Como resultado, a célula T CD4 hospedeira passa a ser um linfócito disfuncional e o HIV começa a se multiplicar pelo organismo, podendo gerar, no futuro, a AIDS. Com o propósito de prevenir todo esse processo de doença, a PrEP age bloqueando a ação da enzima transcriptase reversa, o que impede a produção de proteínas e, consequentemente, a reprodução viral5.
Ressalta-se que, como foi apresentado, a PrEP é específica para prevenir a infecção do HIV, não apresentando nenhum efeito na prevenção de outras infecções3. Portanto, a PrEP não substitui o uso de preservativos. Além da possibilidade de falha na proteção contra o HIV, a profilaxia não previne o risco de aquisição de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST)6. Esse ponto torna-se ainda mais relevante em um contexto no qual se observa elevação do número de casos de sífilis7 e o aumento da resistência de alguns agentes patológicos, especialmente o causador da gonorreia8.
Com relação a sua eficácia e segurança, desde 2010, inúmeros estudos clínicos comprovam o sucesso da PrEP em promover a diminuição do risco de infecção pelo HIV. O nível de proteção que o medicamento fornece varia de acordo com as populações estudadas e com o gênero dos indivíduos10. Ademais, a maioria dos estudos constataram que a adesão (uso correto e regular do medicamento) é um fator crítico para o alcance de maiores níveis de eficácia e efetividade9. Para exemplificar, um estudo clínico de fase III, conhecido como iPrEx, avaliou a PrEP oral diária em homens cisgênero que fazem sexo com homens (HSH) e em mulheres trans, constatando que houve uma redução de 44% no risco de aquisição de HIV com o uso diário de um comprimido único de entricitabina (FTC) combinada ao fumarato de tenofovir desoproxila (TDF)10.
Os principais efeitos adversos observados pelo uso contínuo da PrEP são náusea, vômito e diarreia, mais comuns no primeiro mês de uso11. Outros sintomas reportados com o uso do medicamento são tontura, cefaléia, fadiga, perda de peso, tosse, ansiedade, febre, falta de ar, dor articular e dor muscular. Ademais, o tenofovir pode causar toxicidade renal e redução da densidade mineral óssea, mas estudos mostraram que essas alterações foram reversíveis após a retirada da profilaxia9, 11.
Atualmente, a PrEP oral pode ser administrada de métodos diferentes, de forma contínua (PrEP diária), que consiste na ingestão de um comprimido ao dia, ou sob demanda. Incorporada no protocolo brasileiro em 2022, a PrEP sob demanda consiste no uso de dois comprimidos de 2 a 24 horas antes da relação sexual (dose de ataque), um comprimido 24 horas depois da primeira dose e mais um comprimido 48 horas depois da primeira dose (2+1+1). Caso não ocorra relação sexual após a dose de ataque, não é necessário fazer uso das doses posteriores em 24 e 48 horas. Assim, para obter sua eficácia, o indivíduo precisa se organizar quanto ao momento que a relação irá ocorrer12.
A OMS recomenda a utilização da PrEP para todos os indivíduos sob risco substancial de adquirir o vírus, especialmente para as populações-chave, que são: homens que mantêm relações sexuais com outros homens, usuários de drogas injetáveis, pessoas privadas de liberdade, profissionais do sexo e pessoas transexuais6. Ademais, é importante ressaltar que a PrEP deve ser considerada para outras pessoas que cumpram critérios para o uso da profilaxia, conforme suas práticas sexuais, número de parcerias, uso irregular de preservativos e qualquer outro contexto específico associado a um maior risco de infecção, e que demonstrem interesse e motivação em relação ao uso do medicamento13.
Dentro do contexto mundial de violação dos direitos de pessoas LGBTQUIAPN+ e pelas pessoas que fazem parte da população-chave, a PrEP é um método de prevenção primária, que reduz o risco que essas populações possuem em contrair o vírus, devido às desigualdades estruturais e sociais que elas costumam enfrentar14.
A PrEP oral já foi regulamentada e incorporada em diversos países, e em muitos deles seu uso tem sido monitorado para avaliação de sua efetividade na população. No Brasil, está disponível gratuitamente no SUS desde 2017. Sua implementação foi realizada em duas etapas. A primeira teve início em dezembro de 2017 em 11 Unidades Federadas (UF), junto com a disponibilização da profilaxia em 36 serviços. Já a segunda etapa teve seu início em junho de 2018 que amplificou a oferta da PrEP em outros 15 estados. Em abril de 2020, o estado do Acre realizou sua primeira dispensação de PrEP, o que concluiu a sua implantação em todas as UF10. A partir disso, o protocolo15 disponibilizado pelo Ministério da Saúde descreve as populações prioritárias para o uso dessa intervenção e, em conformidade com a recomendação da OMS6, ressalta que o pertencimento a um dos grupos prioritários (homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, pessoas trans e parcerias sorodiscordantes para o HIV) não é suficiente para caracterizar o risco dos indivíduos. Para isso, pontua-se a importância de se avaliar critérios individuais de comportamento de risco e os contextos associados a maiores chances de exposição ao vírus.
Nesses seis anos de PrEP no Brasil, foi observado que a acessibilidade a essa profilaxia foi ampliado gradualmente, a partir da expansão dos serviços de saúde pública. Em dezembro de 2019, 176 serviços, localizados em 133 municípios, ofertavam a PrEP. Já em dezembro de 2021, 377 serviços já haviam realizado pelo menos uma dispensação da profilaxia em 252 municípios10. Desde 2018, estima-se que 137.787 pessoas iniciaram o uso do antirretroviral. Atualmente, segundo o Ministério da Saúde, existem 72.865 usuários de PrEP no Brasil, sendo que 41,7% dessas pessoas se encontram na faixa etária entre 30 a 39 anos, 81,7% são homens cis que fazem sexo com homens e 56% dos usuários se declararam brancos e possuíam 12 ou mais anos de escolaridade. Ressalta-se que 29% (29.385) dos usuários que tiveram pelo menos uma dispensação nos últimos 12 meses estão descontinuados, o que demonstra uma média baixa de utilização da PrEP oral, demonstrando a importância da aprovação e disponibilização dos outros tipos de PrEP, como a PrEP injetável16.
Apesar da PrEP oral ter seu uso recomendado em diversos países, existem desafios para sua implementação. Exemplos são a baixa aceitação à profilaxia, dificuldades de adaptação a sua posologia e possíveis reações adversas citadas que podem estar associadas à altas taxas de descontinuidade. Além disso, interações medicamentosas da PrEP oral com hormônios pode impedir o uso da profilaxia por pessoas transexuais no processo de hormonização. Por fim, observou-se que indivíduos que iniciaram a PrEP sem conhecimento de que vivem com o HIV ou que apresentaram soroconversão durante o uso da profilaxia possuem um risco elevado de apresentar o vírus com alguma resistência a medicamentos que possuem tenofovir na fórmula. Alguns estudos encontraram mutações genotípicas no vírus do HIV destes indivíduos, o que pode explicar o porquê de eles não responderem de forma satisfatória quando são administrados medicamentos que possuem esse princípio ativo. Por esse fator, a testagem de HIV antes do início da PrEP e rotineira após o início do uso é imprescindível e recomendada pela OMS15.
Esses desafios na implementação da PrEP oral levaram ao desenvolvimentos de novas tecnologias para prevenção ao HIV como a PrEP injetável e o anel vaginal de dapivirina. A PrEP injetável consiste no cabotegravir injetável de ação prolongada (CAB-LA), um fármaco que impede a replicação do vírus, administrado inicialmente como duas injeções com um mês de intervalo entre elas e depois como uma injeção a cada dois meses através da administração intramuscular. Foi observado que a PrEP injetável possui uma efetividade maior que a PrEP oral, provavelmente por reduzir o impacto da adesão na efetividade do tratamento. No Brasil, o CAB-LA foi aprovado pela ANVISA em julho de 2023, porém essa tecnologia ainda não está disponível fora do contexto de ensaios clínicos. Apesar de ser um medicamento que combate a transmissão do vírus HIV, ele não deve ser considerado uma vacina, visto que ele não tem a capacidade de ativar o sistema imunológico do indivíduoas17, 18.
O anel vaginal de dapivirina, método de PrEP recomendado pela OMS desde 2021, porém, ainda não foi aprovado pela ANVISA. O método consiste em um anel de silicone flexível que proporciona liberação sustentada do medicamento antirretroviral (ARV) dapivirina durante um mês, com o objetivo de reduzir o risco de infecção pelo HIV. Esse medicamento é destinado apenas a pessoas com útero e apresenta taxa de proteção contra o HIV de 30%. Em relação a aceitabilidade, estudos mostraram que as mulheres relataram que o anel era confortável e que estariam dispostas a utilizá-lo como método de prevenção em seu dia a dia19, 20. Espera-se que ao aumentar o repertório de tipos de PrEP no mercado, a adesão ao tratamento aumente, visto que o profissional da saúde, juntamente com o paciente, poderá escolher qual profilaxia se encaixa melhor às necessidades individuais19.
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