O medicamento moderno e o bem estar da sociedade


Por Edson Perini

A passagem do Século XIX para o Século XX marca um tempo de grandes transformações sanitárias e demográficas. O mundo assistiu um significativo aumento da expectativa de vida dos homens, perceptível não apenas nos índices de mortalidade, mas também nas ruas e em nossas famílias. Ao longo desse processo, uma profunda mudança no perfil das doenças se processou, com o declínio da importância epidemiológica das infecções e crescimento das afecções crônico-degenerativas. Esse é um fato com abundantes evidências científicas, e também claro em nossa percepção cotidiana. As explicações para essa transição, entretanto, não são tão tranquilas.

O senso comum, e certa tendência de opiniões entre profissionais, com grande poder de convencimento para a população, entende que tal fato se assenta na inquestionável transformação tecnológica da área da saúde. Entretanto, evidências levam nosso raciocínio científico a questionar essa relação, e compreender que as transformações sociais, políticas, e mesmo a evolução tecnológica de áreas não-médicas formam um grande complexo de causas para o fenômeno, no qual a tecnologia médica tem pouco poder explicativo –conquistas das classes trabalhadoras, com melhores salários e redução da jornada de trabalho, evolução dos meios de produção, conservação, distribuição e acesso aos alimentos, crescimento das ações de saneamento básico, enfim, são razões que podemos citar nesse complexo de causas.

Independente de qualquer polêmica, o medicamento moderno chegou tarde nessa transformação e não pode ser incluído nesse complexo explicativo. Seu efeito é tardio – mesmo para a tuberculose ele não aparece senão nos anos 1940, e ainda assim com pouco poder explicativo. Assim, sua importância ou o grau de sua participação é algo cientificamente questionável. Mas, se o seu papel na transformação do perfil de longevidade e mesmo na transição das doenças infecciosos para as crônicas deve ser pensado com cautela – o que, obviamente não significa inexistir, inconteste é sua importância na melhoria de nossa qualidade de vida atual.

Interessante pensarmos agora que a passagem do Século XX para o XXI nos traz uma nova realidade, com questões bastante diferentes, porém novamente nos colocando diante da mesma pergunta: qual o papel da tecnologia em saúde nas grandes transformações de nossa existência como grandes coletivos humanos? Segundo dados do Sistema de Monitoramento de Fatores de Risco Comportamental do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, de 1995 a 2010 a população americana tornou-se mais obesa e aumentou o consumo de álcool, inclusive seu consumo pesado. No entanto, reduziu o consumo de tabaco e aumentou a prática de exercícios físicos. Obviamente são tendências gerais, com diferenças regionais importantes. Mas suficientes para nos questionarmos quais serão, nessa passagem de século, os efeitos a serem destacados com tais mudanças na saúde e na longevidade humanas. E novamente, nos perguntarmos: qual é o papel da tecnologia em saúde, e especificamente o papel do medicamento moderno nesse cenário dessas transformações? Este continua sendo um grande desafio científico?

2 pensamentos sobre “O medicamento moderno e o bem estar da sociedade

  1. Olá amigos do CEMED,

    Achei muito interessante o texto, e gostaria de trazer as problematizações que este gerou em mim…

    Não pretendo fugir do foco da discussão, o qual ao meu ver centra-se principalmente nos papéis das tecnologias em saúde com ênfase em medicamentos, mas fazer uso de conceitos que ao meu ver podem gerar ferramentas para compreensão desta dinâmica. Foco principalmente na ideia de tecnologias em saúde imateriais e da visibilização sistêmica de nosso cotidiano, sempre com a centralidade do usuário no cuidado em saúde.

    Ricardo Bruno, Edson Perini e Emerson Merhy, trazem a ideia em suas produções de que as tecnologias em saúde podem ser para além de medicamentos, equipamentos, ou outros insumos concretos… Que podem ser relacionadas a produções “imateriais”, ou seja, processos organizacionais, de clínica ou cuidado em nosso cotidiano.

    Fazendo uso mais explicitamente das contribuições de Merhy, este traz a ideia das tecnologias duras (equipamentos, medicamentos e outros insumos concretos em saúde), tecnologias leve-duras (como processos organizacionais, conhecimentos estruturados – como clínicos, epidemiológicos, administrativos e etc) e leves (mais abertas à criatividade ou trabalho vivo, mais relacionais, produzidas em ato, geradoras de vínculos e capaz de captar o papel singular de cada cuidado em saúde).

    Fazendo uso desta categorização (que na realidade é bastante fluídica), poderíamos dizer que as tecnologias em saúde se abrem e se inter-relacionariam de modos muito variados…

    Um Farmacêutico, no ato da dispensação, teria que fazer uso das tecnologias duras (do “melhor” medicamento cientificamente em si), das leve-duras (para fazer uso da clínica e farmacologia, assim como da epidemiologia e da dinâmica social da localidade para orientar os usuários), e das leves (de modo a captar a singularidade do encontro para com o usuário, perceber suas dificuldades e anseios específicos, promover vínculo, e potencializar sua ações visando a autonomia em saúde para com aquele que poderá viver o resto da sua vida ao lado de um antihipertensivo).

    Um medicamento, por mais avançado cientificamente que seja, pode gerar diversos problemas ao usuário caso não passe pelas orientações do farmacêutico…

    Um farmacêutico, sem os medicamentos necessários para as enfermidades específicas, ou a capacidade de acolher o usuário, pode não oferecer o insumo em saúde necessário, ou oferecê-lo “erroneamente”, de um modo que pode até gerar mais problemas ao cidadão que procurou resposta aos seus anseios no serviço de saúde…

    Uma prática em saúde com centralidade nos usuários, por mais que possa produzir vínculos e captar as necessidades singulares daquele indivíduo, precisa fazer uso de medicamentos (quando necessários) e de conhecimentos estruturados, de modo a ser efetiva.

    Digo isso tudo, com o intuito de captar de modo mais sistêmico (uma ferramenta que Perini demonstrou ser muito útil na problematização do ciclo de Assistência Farmacêutica) a dinâmica dos processos de trabalho em saúde, de modo a potencializar as tecnologias que fizermos uso, independente das categorizações que estas recebam.

    Portanto, ao meu ver os desafios para as tecnologias em saúde, e para os medicamentos, são muitos…
    Estudos científicos mais idôneos, financiamento público (se gerado por captação privada, de indústrias, ou sua fonte, é um bom debate), pode ser uma ideia entre muitas que impactariam diretamente em sua perspectiva e qualidade e variedade dura…

    Maior valorização dos contextos socioculturais de modo a se realizar uma clínica mais ampliada (uma ferramenta utilizada por Gastão Campos), assim como apostar na inclusão do farmacêuticos em equipes multiprofissionais e na instituição de projetos terapêuticos mais cuidadores, são ações que impactam diretamente na dinâmica da promoção do uso racional de medicamentos, e que inclusive fazem com que os medicamentos (considerados “duramente”), tenham maior efetividade.

    Sem dizer dos enfrentamentos necessários e urgentes em questão de medicalização (ou medicamentalizacão), vinculadas com a necessidade de uma maior regulação midiática, tanto quanto problematização séria das relações público-privadas “na área farmacêutica” (uma outra boa discussão, tanto em questão de estratégias, quando de objetivos, a qual não me atrevo aprofundar sem um bom espaço, principalmente na questão dos comércios varejistas).

    Deste modo, sem querer fechar em categorizações, ou fugir do assunto… Os medicamentos, e a saúde, tem uma variedade muito grande de desafios e perspectivas, independente se considerado em sua perspectiva estritamente clínica, cultural, social, organizacional, ou mesmo singular, vinculada ao momento em que um medicamento é dispensado a um usuário.

    Abraços, e desculpem pelo grande texto… Só gostaria de compartilhar as afetações que foram geradas em mim. Obrigado e parabéns pela produção de oportunidades de discussão em AF!

    • Meu caro Daniel
      Primeiro me desculpe a demora em lhe responder… muitas coisas no dia a dia e a necessidade de também de compreender melhor a amplitude e profundidade de seu belo comentário. E em segundo lugar queria lhe transmitir os agradecimentos de toda a equipe do Cemed, u no meio, que ficou muito honrada e feliz com sua mensagem.

      Fiquei particularmente feliz com a lembrança de duas questões fundamentais que você nos traz: a realidade também imaterial da tecnologia (em especial a da saúde), e a visão sistêmica, que permanece sendo o melhor modelo que temos de pensar nossa realidade, ambas as questões fundamentais para melhor compreendermos nossa saúde e nossas ações sobre ela.

      Andei repensando sobre o desafio colocado no texto, e me ocorre que da passagem o Séc XIX para o XX, e agora o XX para o XXI talvez tenhamos uma diferença importante para pensarmos o papel do medicamento como tecnologia para a nossa longevidade, além de nosso bem estar. Andei lendo sobre duas correntes de pensamento ente especialistas, que nos levam a duas linhas de pensamento: o ‘ataque’, por assim dizer, a enfermidades específicas, como o câncer, as doenças cardíacas e degenerativas do sistema nervoso, ou o ‘ataque’ ao envelhecimento das células , suas estruturas e por consequência aos órgão e sistemas, em uma postura preventivista. E ai me ocorre que a grande diferença entre os dois períodos é que em ambos os caminhos o medicamento moderno terá um novo papel, que anteriormente não existiu.

      Bom, mas isso é assunto para novas discussões…

      E finalmente trago a você um recado da turma do Cemed, discutida na última reunião: se você quiser nos brindar com um texto sobre esse assunto, sobre as questões que você postou como comentário, teremos o maior prazer em analisar e publicar. Digo analisar pois nada no blog é publicado sem uma análise coletiva, inclusive com os alunos, que têm nisso uma forte participação e instrumento de crescimento. E de quebra, se também quiser, podemos pensar, a duas canetas, desenvolver sobre esse novo papel do medicamentos nesse novo tempo.

      Um grande abraço, e apareça para um café!

      Edson

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