Uso de opioides e o controle da dor crônica: cenário atual, eficácia, segurança e como minimizar danos

por Victor G. Batista Freitas

De acordo com a International Association for the Study of Pain (IASP), a dor é caracterizada como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano tecidual real ou potencial” e pode estar relacionada a fatores biológicos, sociais e cognitivos (1). Segundo o novo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Dor Crônica , ainda aberto para consulta pública, a dor pode ser aguda (duração inferior a 3 meses) ou crônica (duração superior a 3 meses), e, conforme o seu mecanismo fisiopatológico, pode ser classificada em três tipos (2):

Dor nociceptiva: ocorre como mecanismo de defesa do organismo contra a lesão e injúria tecidual causadas por estímulos diversos (calor, pressão, contato com substâncias nocivas, etc). Quando o dano tecidual ocorre, as terminações nervosas periféricas – denominadas também de nociceptores – transmitem para o sistema nervoso central os sinais de nocicepção. Nesse processo, são liberados mediadores inflamatórios (bradicinina, prostaglandinas, leucotrienos e substância P) que promovem a vasodilatação, edema e o aumento da sensibilidade dos nociceptores, potencializando a percepção da dor (2,3). Exemplos: dores músculo-esqueléticas, como a dor lombar ou cervical mecânicas, tendinopatias, osteoartrite; dor miofascial; algumas cefaleias e dores viscerais; insuficiência vascular periférica, metástases ósseas, amputação, entre outras dores causadas por estímulo aos nociceptores

Dor neuropática: é aquela causada por alterações nas estruturas nervosas do sistema nervoso somatossensitivo, resultando na ativação incomum na via da dor ou nociceptiva (2,4). Exemplos: neuropatia diabética, doenças desmielinizantes como a esclerose múltipla, trauma medular, dor pós acidente vascular cerebral (AVC), síndrome de Guillain-Barré, Doença de Parkinson, compressão tumoral de um nervo. 

Dor nociplástica: é a dor oriunda de uma “nocicepção alterada”, ainda que não haja uma ameaça ou uma causa determinada de lesão tecidual real que provoque a ativação dos nociceptores periféricos, ou ainda uma injúria ou doença nos sistema somatossensitivo que cause a dor (1,2). Exemplos: dor crônica generalizada (como fibromialgia), síndrome do intestino irritável e outras desordens viscerais; dor musculoesquelética primária crônica, como a dor lombar não específica e crônica. 

As queixas relacionadas à sensação de queimação, ao frio doloroso, choque, formigamento, amortecimento, coceira, “alfinetada e agulhada” sugerem dor neuropática. Já a sensação recorrente de peso, tensão e dolorimento pode ser indicativo da dor de origem nociceptiva. Os sintomas de queimação, pressão, peso e tensão podem sugerir a dor nociplástica (2). 

Vale ressaltar que a dor também pode ser de origem mista ou oncológica. A dor mista pode englobar condições tanto da dor nociceptiva, neuropática e nociplástica. Seu tratamento geralmente demanda uma farmacoterapia combinada de acordo com as características de cada tipo de dor (2). Já o tratamento da dor oncológica visa o controle álgico, isto é, manejo da dor,  de modo a permitir uma qualidade de vida adequada para o paciente oncológico. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o controle álgico seja guiado por escalas de avaliação clínica da intensidade da dor, de modo a nortear o tratamento adequado (5). Um exemplo de escala adotada é a Escala Visual Analógica (EVA) (Figura 1), ferramenta que possibilita medir a intensidade da dor do paciente a partir de uma pontuação, de zero a dez, e da identificação de faces que representam a dor que o indivíduo está sentindo.

Figura 1: Escala Visual Analógica (EVA)

Fonte: plataforma Multisaúde, disponível em  https://multisaude.com.br/.

O manejo para curar, tratar e aliviar a dor deve ser feito de acordo com as particularidades de cada tipo de dor. As estratégias para atenuar a dor envolve tanto intervenções não farmacológicas, tais como acupuntura e massoterapia, quanto intervenções farmacológicas  que inclui o uso de analgésicos não-opioides, anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), fármacos adjuvantes (antidepressivos, anticonvulsivantes, laxantes, antieméticos) e analgésicos opioides (2, 5).

O uso dos AINEs se deve às atividades antipiréticas, analgésicas e anti-inflamatórias para reduzir a febre, dor, edema, entre outros sintomas inflamatórios. O mecanismo farmacológico que explica essas funções envolve a capacidade dos AINEs em inibir a síntese de prostaglandinas, isto é, mediadores lipídicos indutores das respostas inflamatórias. Entretanto, existem diferentes tipos de prostaglandinas e, ao inibir também a síntese daquelas com funções benéficas para o organismo, os AINEs provocam inúmeros efeitos adversos. Por exemplo, ao reduzir a síntese da prostaglandina responsável formação de muco protetor da mucosa gástrica, esses fármacos podem acarretar problemas gastrointestinais como náuseas, dor abdominal, diarreia, gastrite e úlceras gastroduodenais. Além disso, o uso de AINEs deve ser realizado com cautela em  idosos e grávidas, sendo contraindicados no 3º trimestre da gestação e para pessoas com dengue, insuficiência renal, hepática, respiratória e cardíaca (7).

Tal como os AINEs, os analgésicos não opioides (ex. dipirona e paracetamol) também são indicados como monoterapia ou em combinação com fármacos adjuvantes para os quadros de dor de intensidade leve. Nesse caso, a dor nociceptiva consegue responder bem ao tratamento sintomático com AINEs e também com analgésicos não opioides (4). O mesmo não acontece com a dor neuropática e nociplástica, cujo manejo deve ser realizado com medicamentos adjuvantes analgésicos, como antidepressivos e anticonvulsivantes  (2).

Nessa perspectiva, doenças como a esclerose múltipla, neuropatia diabética e fibromialgia são tratadas com fármacos adjuvantes do tipo antidepressivos tricíclicos (ADT), inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina (ISRSN) e anticonvulsivantes (2). O PCDT da Dor Crônica preconiza o uso de amitriptilina e gabapentina para contornar a dor advinda das lesões nas estruturas nervosas – ambos os medicamentos estão presentes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) (2,8).

A recomendação de tratamento com opioides deve ser considerada somente em casos de dor refratária, como nos quadros de dor intratável grave, exacerbações episódicas de dor intensa ou dor neuropática do câncer (5). Logo, o tratamento da dor crônica com analgésicos opioides é recomendado apenas para o controle da dor de intensidade moderada e forte, nos casos em que o manejo com analgésicos não opioides e AINEs não foi bem sucedido. A OMS recomenda que a dor de intensidade leve (Figura 2), seguindo a EVA (entre 1 e 3), deve ser tratada com AINEs, analgésicos não opioides e medicamentos adjuvantes. Na dor moderada (EVA entre 4 e 7), estes fármacos são associados aos opioides fracos (de ação curta), como codeína e tramadol, enquanto que na dor intensa (EVA acima de 7) são associados aos opioides mais potentes, como morfina, metadona e fentanila (5,9). Essas associações de analgésicos são estratégias para contornar a dor e minimizar os efeitos adversos e problemas relacionados ao uso de medicamentos em doses altas, de modo a promover o uso racional dos mesmos (5,10).

Figura 2: Manejo da dor de acordo com a intensidade.

Fonte: Blog do Cemed, disponível em  https://cemedmg.wordpress.com/tag/analgesicos-opioides/. (11)

O uso de opioides deve ser realizado mediante avaliação e prescrição médica, e a dispensação dessa classe de medicamentos  exige a  retenção de receita, conforme a Portaria  n° 344 de 1998 (12). Na maioria dos casos, os analgésicos opioides não são a primeira escolha para o tratamento da dor. O uso de opioides requer cautela e monitoramento dos possíveis riscos associados à utilização destes fármacos, principalmente o de depressão respiratória quando a dose administrada ultrapassa a dose terapêutica. Para além disso, existem outros efeitos adversos associados, como constipação, náuseas, vômitos, tonturas, confusão mental, prurido (coceira), disforia, retenção urinária e hipotensão (3,7). O uso prolongado de opioides contribui para o desenvolvimento de tolerância e dependência, o que pode culminar em um quadro de vício. A tolerância ocorre por meio de uma adaptação à exposição contínua a determinada substância, fazendo com que o seu efeito, neste caso o analgésico, seja reduzido, sendo necessário doses mais altas para atingir o efeito esperado. A dependência está associada com a tolerância, porém se diferencia principalmente no que se relaciona à manifestação do  quadro de abstinência após uma interrupção abrupta do uso da substância. Em decorrência disso, é comum na síndrome de abstinência a manifestação de sintomas, como agitação, midríase (dilatação da pupila, insônia, hipertensão (3,13). Já o vício envolve tanto a tolerância e dependência como também um conjunto de influências genéticas, psicossociais e ambientais. Na situação de vício o indivíduo apresenta comportamentos compulsivos, caracterizados pela ânsia em fazer o uso e pela falta de controle sobre o uso da substância, ainda que ela provoque prejuízos à saúde e ao convívio familiar, profissional e social (12). Assim, visando promover o uso adequado, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, publicou um guia com orientações sobre o adequado uso de opioides nos casos de dor crônica (6,11). Leia as recomendações na íntegra.

A dor sem alívio tem efeitos físicos e psicológicos ruins (9). É de fundamental relevância que a abordagem centrada no paciente seja capaz de compreender tanto o quadro clínico quanto o contexto do paciente, de modo a verificar a história pregressa, sentimentos e expectativas do indivíduo (2). A promoção de ações educativas que conscientizem o paciente sobre o seu tratamento e o coloque como participante ativo na elaboração do seu plano de cuidado é necessária (2). Ademais, a equipe assistencial de saúde deve dispor de ferramentas e recursos para direcionar o manejo da dor de forma efetiva e segura. Independentemente do medicamento ou da combinação prescrita, é essencial a reavaliação regular para avaliar a manutenção do efeito analgésico e se o controle álgico está sendo compatível, bem como garantir o uso correto e seguro dos medicamentos. Caso o paciente não esteja se beneficiando do tratamento proposto após duas a quatro semanas de uso dos medicamentos em doses adequadas, é pouco provável que apresente resposta posteriormente. Assim, deve-se interromper o tratamento e buscar por outras alternativas terapêuticas (2). Para isso, recomenda-se que os pacientes sempre consultem um médico  e um farmacêutico.

Referências bibliográficas:

1- SRINIVASA, Raja et al. THE REVISED International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. PAIN, International Association for the Study of Pain, v. 161, ed. 9, p. 1976-1982, 16 jul. 2020. DOI 10.1097/j.pain.0000000000001939. Disponível em: https://journals.lww.com/pain/abstract/2020/09000/the_revised_international_association_for_the.6.aspx. Acesso em: 8 nov. 2023.

2- Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde – SCTIE. 110ª Reunião Ordinária da Conitec, de julho de 2022. Relatório de Recomendação de Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Dor crônica. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/consultas/relatorios/2022/20221101_pcdt_dor_cronica_cp74.pdf. Acesso em: 15 nov. 2023.

3- Yaksh TL, Wallace MS. Opioides, analgesia e tratamento da dor. In: Flexner C. As bases farmacológicas da terapêutica de Goodman & Gilman. 12ª edição; 2012. p. 481-525.

4- Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria nº 1.083, de 02 de outubro de 2012. Aprova Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Dor crônica. In MS(Brasil), SAS. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas : volume 3 / Brasília: Ministério da Saúde, 2014. pág. 195-219.

5- WHO Guidelines for the Pharmacological and Radiotherapeutic Management of Cancer Pain in Adults and Adolescents. Geneva: World Health Organization; 2018. ANNEX 1, Evaluation of Pain. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK537489/. Acesso em: 15 nov. 2023.

6 – DOWEL, Deborah et al. CDC Clinical Practice Guideline for Prescribing Opioids for Pain — United States, 2022. Recommendations and Reports, Centers for Disease Control and Prevention, v. 71, ed. 3, 4 nov. 2022. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/71/rr/rr7103a1.htm. Acesso em: 15 nov. 2023.

7- BURKE, Anne; FITZGERALD, Garret A.; SMYTH, Emer. Analgésicos-antipiréticos. Goodman & Gilman – As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006. Cap. 26, p. 601- 637.

8 – BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: RENAME. 1ª. ed. Brasília, 2022. páginas 63 a 35. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/20220128_rename_2022.pdf . Acesso: 15 nov. 2023.

9- Protocolo de dor. HCOR Associação Beneficente Síria, [s. l.], v. 44, 23 ago. 2021. Disponível em: https://www.hcor.com.br/area-medica/wp-content/uploads/sites/3/2021/12/17-Protocolo-de-dor.pdf. Acesso em: 15 nov. 2023.

10- Centers for Disease Control and Prevention. CDC Guideline for Prescribing Opioids for Chronic Pain. United States, 2016. Disponível em: https://www.cdc.gov/drugoverdose/pdf/Guidelines_At-A-Glance-508.pdf. Acesso: 24 nov. 2023.

11- Centro de Estudos do Medicamento (CEMED- UFMG). Dor e opioides: riscos do uso e metas para minimizar danos. Blog do CEMED, 6 jul. 2016. Disponível em: https://cemedmg.wordpress.com/tag/analgesicos-opioides/. Acesso em: 27 fev. 2024.

12 – BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária de Vigilância Sanitária. Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o . Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 dez. 1998. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso em: 15 nov. 2023.

13- Committee on Pain and Addiction. Definitions Related to the Use of Opioids for the Treatment of Pain. United States, 2001. Disponível em: https://www.naabt.org/documents/aps_consensus_document.pdf. Acesso: 23 jan. 2024.

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