CEMED PESQUISA

Aspectos clínicos e farmacoterapêuticos do mieloma múltiplo

Laura Fonseca (28/03/2024)

Mieloma múltiplo (MM) é um tipo de câncer maligno que se origina dos plasmócitos (células do sistema imune responsáveis pela produção de anticorpos) na medula óssea. Os plasmócitos defeituosos se agrupam na medula óssea, formando os plasmocitomas, reconhecidos como tumores malignos devido à sua composição anômala, que interfere na função normal das células saudáveis. Estas estruturas podem se desenvolver tanto dentro do osso, conhecidas como intramedulares, quando a  fora dele, extramedulares. Quando se formam no interior do osso, afetam a produção regular de outras células sanguíneas e danificam a estrutura óssea ao se expandirem no tecido(1,2).

Os plasmócitos têm a função principal de gerar as proteínas chamadas imunoglobulinas, os anticorpos, vitais para a defesa do organismo. Sendo assim, os plasmócitos anômalos geram imunoglobulinas com anomalias, ou desordenadas, conhecidas como proteína monoclonal ou proteína M devido à sua estrutura inadequada(2). Assim, outra característica distintiva do mieloma é a presença de proteína monoclonal no sangue e na urina. A quantidade de proteína monoclonal varia entre os pacientes, sendo crucial na avaliação da doença. A presença de proteína M pode causar danos nos rins, assim é necessário determinar sua produção  pelas células do mieloma, seja em excesso ou em quantidade insuficiente.(2,3).

O MM é frequentemente descrito pelo acrônimo “CRAB”, representando as principais manifestações clínicas: hiperCalcemia (níveis elevados de cálcio no sangue), disfunção Renal, Anemia e lesões ósseas (Bone). Estes sintomas podem afetar significativamente a qualidade de vida e a capacidade funcional dos pacientes, desde os estágios iniciais da doença até os mais avançados(3). Portanto, o manejo do paciente com MM no Sistema Único de Saúde (SUS) envolve uma abordagem multidisciplinar em diferentes níveis de complexidade, desde a detecção precoce até o tratamento em centros de referência em oncologia e hematologia. O encaminhamento adequado dos pacientes com suspeita de mieloma é essencial para garantir um diagnóstico precoce e um manejo adequado da doença, levando em consideração suas características epidemiológicas e clínicas(4).

O mieloma corresponde a cerca de 1% dos tumores malignos e 10% das neoplasias hematológicas e, em 2019, a incidência padronizada por idade foi de 1,92/100.000 habitantes globalmente(4).Os fatores de risco primários para o MM incluem idade avançada, sexo, origem étnica e história familiar. A maioria dos diagnósticos ocorre em adultos com mais de 65 anos, com apenas 15% dos casos ocorrendo em indivíduos com menos de 55 anos. Ocorre 1,5 vezes mais em homens do que em mulheres, e ocorre com maior frequência em pessoas pretas e pardas(5-7). Além disso, há uma forte correlação entre o risco de desenvolver MM e parentes de primeiro grau(8). Condições clínicas como gamopatia monoclonal de significado indeterminado (GMSI), plasmocitoma solitário e MM latente também aumentam o risco de desenvolver MM. Pacientes com GMSI, com concentrações elevadas de proteína M e uma relação anormal de cadeias leves livres, têm um risco aumentado de desenvolver MM ativo. O MM latente tem uma alta taxa de progressão para MM ativo, com taxas decrescentes ao longo do tempo(9)

O diagnóstico da doença  envolve uma análise detalhada da história clínica do paciente, identificando sintomas que podem estar relacionados às lesões de órgãos afetados. Dor óssea, anemia, problemas renais e infecções são sintomas comuns, enquanto sintomas constitucionais e neurológicos também devem ser investigados. A avaliação do histórico médico deve incluir informações sobre infecções prévias, doenças crônicas, exposição a substâncias prejudiciais e histórico familiar de MM. A investigação laboratorial inicial envolve exames de sangue, urina, aspirado de medula óssea e de imagem, visando identificar lesões de órgãos-alvo, como rins e ossos, presença de proteína monoclonal tumoral e infiltração plasmocitária na medula óssea(10).

Para pacientes sem sintomas, o diagnóstico  ocorre frequentemente durante exames de rotina, como o hemograma, que permite detectar alterações nas células sanguíneas. O médico pode solicitar uma biópsia da medula óssea, na qual um fragmento do osso da bacia é coletado e examinado em laboratório para avaliar a quantidade de plasmócitos presentes. Ao suspeitar de MM, são recomendados exames como eletroforese de proteínas e imunofixação de proteínas, realizados por meio de amostras de sangue e urina, para identificar a presença de proteína M no sangue do paciente. Além disso, podem ser solicitados exames de imagem, como radiografia óssea, tomografia computadorizada, PET Scan e ressonância magnética, para verificar possíveis alterações nos ossos e a presença de plasmocitomas(1,10).

Uma das opções de tratamento utilizada para o mieloma é a quimioterapia, a qual envolve medicamentos como ciclofosfamida, cisplatina, doxorrubicina, doxorrubicina lipossomal, etoposideo, melfalano, vincristina e é realizada com o objetivo de destruir, controlar ou inibir o crescimento das células doentes. Reações adversas como enjoo, diarreia, obstipação, alteração no paladar, boca seca e mucosite podem ocorrer, mas existem medicamentos para minimizá-los. A queda de cabelo também é comum devido ao impacto da quimioterapia nas células saudáveis, como os folículos pilosos(12)

Além da quimioterapia, outras opções terapêuticas incluem os imunomoduladores (talidomida, lenalidomida e pomalidomida) e os inibidores do proteassoma (bortezomibe, carfilzomibe e ixazomibe), que são eficazes no tratamento do mieloma, tendo como principal alvo  células doentes. Os anticorpos monoclonais (elotuzumabe, daratumumabe e isatuximabe) produzidos em laboratório para agir em alvos específicos, também são utilizados no tratamento do MM. O tratamento é realizado em ciclos de esquemas triplos, seguidos por períodos de intervalos(12-14)

Os anticorpos monoclonais biespecíficos representam uma nova classe terapêutica que está transformando o tratamento do câncer em todo o mundo. Esses medicamentos contêm duas partes distintas de anticorpos monoclonais, que podem se ligar a dois antígenos simultaneamente: um reconhecendo a célula tumoral e outro se unindo aos linfócitos, estimulando assim o sistema imunológico a combater a doença em conjunto. No caso do mieloma, o teclistamabe, por exemplo, direciona-se aos receptores CD3 e aos antígenos de maturação de células B (BCMA), enquanto o talquetamabe alveja os receptores CD3 e a proteína GPRC5D(15).

Além dos anticorpos monoclonais biespecíficos, outras opções terapêuticas para o MM incluem o uso de bisfosfonatos, que ajudam a fortalecer os ossos, e o transplante de medula óssea. O transplante é o padrão ouro do tratamento do mieloma no Brasil e é indicado com base em diversos fatores, como o estágio da doença, as condições físicas do paciente e sua idade. Geralmente, é realizado o transplante autólogo, em que as células-tronco são coletadas do próprio paciente, criopreservadas e, após um regime de quimioterapia de alta dose para eliminar as células doentes, são infundidas novamente no paciente por via intravenosa. O período pós-transplante requer cuidados especiais, pois o paciente fica mais suscetível a infecções devido à queda no número de células sanguíneas(16)

O CAR-T Cell, que consiste em uma terapia que promove a reprogramação celular, tem demonstrado resultados promissores no tratamento do MM. Esse método terapêutico envolve a coleta das células T do paciente, que são células de defesa do organismo contra vírus e bactérias. Essas células são então geneticamente modificadas em laboratório, onde um novo gene contendo um receptor de antígeno quimérico (CAR) é introduzido(1). Esse CAR direciona as células T modificadas para atuar especificamente em células cancerígenas que expressam o antígeno BCMA, característico do mieloma. Dessa forma, as próprias células T do paciente, após a modificação genética, são capazes de eliminar as células cancerígenas do corpo(17). No Brasil, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou o uso do medicamento ciltacabtageno autoleucel, baseado nesta tecnologia, para o tratamento de pacientes adultos com mieloma que não responderam ao tratamento com as três principais classes de medicamentos utilizadas até então e que tiveram recidiva da doença(18).

Existem diversas opções terapêuticas para o tratamento do MM e o acesso ao tratamento se dá via SUS e sistema privado. Portanto, é fundamental que, diante de qualquer sintoma sugestivo da  doença, seja buscado atendimento médico para iniciar o tratamento o mais rápido possível. Apesar de ainda ser considerada uma doença “rara”, a incidência tem aumentado como consequência do fenômeno do envelhecimento da população, dentre outros fatores. A detecção precoce e o acesso a tratamentos eficazes são cruciais para aumentar a sobrevida e melhorar a qualidade de vida dos pacientes com MM.

O Cemed possui uma linha de pesquisa sobre o mieloma, que busca avaliar os desfechos clínicos de efetividade e segurança do tratamento disponível para a neoplasia. Até o momento  foram organizados três seminários com temáticas relacionadas ao MM com participação de profissionais e pesquisadores da área: o primeiro,  “Aspectos clínicos e uso da talidomida no mieloma múltiplo” em agosto de 2018, o segundo “Mieloma Múltiplo: passado, presente e futuro” em novembro de 2022; e o terceiro, “Farmácia oncológica e acesso a medicamentos” em março de 2023. Diversos artigos originados de trabalhos de conclusão de curso, mestrado e doutorado foram publicados. Para saber mais sobre, acompanhe a nossa equipe por meio das redes sociais do Cemed e confira a lista de artigos abaixo!

Referências

  1. Rajkumar SV. Multiple myeloma: 2022 update on diagnosis, risk stratification, and management. Am J Hematol. 2022 Aug;97(8):1086-1107. doi: 10.1002/ajh.26590. Epub 2022 May 23. PMID: 35560063; PMCID: PMC9387011.
  2. Rajkumar SV. Myeloma today: Disease definitions and treatment advances. Am J Hematol. 2016 Jan;91(1):90-100. doi: 10.1002/ajh.24236. Erratum in: Am J Hematol. 2016 Sep;91(9):965. PMID: 26565896; PMCID: PMC4715763.
  3. Padala SA, Barsouk A, Barsouk A, Rawla P, Vakiti A, Kolhe R, Kota V, Ajebo GH. Epidemiology, Staging, and Management of Multiple Myeloma. Med Sci (Basel). 2021 Jan 20;9(1):3. doi: 10.3390/medsci9010003. PMID: 33498356; PMCID: PMC7838784.
  4. Zhou, L., Yu, Q., Wei, G. et al. Measuring the global, regional, and national burden of multiple myeloma from 1990 to 2019. BMC Cancer 21, 606 (2021). https://doi.org/10.1186/s12885-021-08280-y.
  5. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINFOMA E LEUCEMIA – ABRALE. Pesquisa qualitativa de seguimento terapêutico com pacientes de Mieloma Múltiplo. 2017.
  6. Silva ROP e, Brandão KMA, Pinto PVM, Faria RMD, Clementino NCD, Silva CMF, et al.. Mieloma múltiplo: características clínicas e laboratoriais ao diagnóstico e estudo prognóstico. Rev Bras Hematol Hemoter [Internet]. 2009Mar;31(2):63–8.
  7. Ministério da Saúde. DataSUS. Sistema de Informação Ambulatorial do SUS ? SIA/SUS.
  8. Brasil. Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema único de Saúde. Relatório de Recomendação – Diretrizes Diagnósticas Terapêuticas – Mieloma Múltiplo. 2022.
  9. Huang J, Chan SC, Lok V, Zhang L, Lucero-Prisno DE 3rd, Xu W, Zheng ZJ, Elcarte E, Withers M, Wong MCS; Non-communicable Disease Global Health Research Group, Association of Pacific Rim Universities. The epidemiological landscape of multiple myeloma: a global cancer registry estimate of disease burden, risk factors, and temporal trends. Lancet Haematol. 2022 Sep;9(9):e670-e677. doi: 10.1016/S2352-3026(22)00165-X. Epub 2022 Jul 14. PMID: 35843248.
  10. Kyle RA, Durie BG, Rajkumar SV, Landgren O, Blade J, Merlini G, Kröger N, Einsele H, Vesole DH, Dimopoulos M, San Miguel J, Avet-Loiseau H, Hajek R, Chen WM, Anderson KC, Ludwig H, Sonneveld P, Pavlovsky S, Palumbo A, Richardson PG, Barlogie B, Greipp P, Vescio R, Turesson I, Westin J, Boccadoro M; International Myeloma Working Group. Monoclonal gammopathy of undetermined significance (MGUS) and smoldering (asymptomatic) multiple myeloma: IMWG consensus perspectives risk factors for progression and guidelines for monitoring and management. Leukemia. 2010 Jun;24(6):1121-7. doi: 10.1038/leu.2010.60. Epub 2010 Apr 22. PMID: 20410922; PMCID: PMC7020664.
  11. Cowan AJ, Green DJ, Kwok M, Lee S, Coffey DG, Holmberg LA, Tuazon S, Gopal AK, Libby EN. Diagnosis and Management of Multiple Myeloma: A Review. JAMA. 2022 Feb 1;327(5):464-477. doi: 10.1001/jama.2022.0003. PMID: 35103762.
  12. Gentile M, Morabito F, Martino M, Vigna E, Martino EA, Mendicino F, Martinelli G, Cerchione C. Chemotherapy-based regimens in multiple myeloma in 2020. Panminerva Med. 2021 Mar;63(1):7-12. doi: 10.23736/S0031-0808.20.04145-2. Epub 2020 Sep 21. PMID: 32955186.
  13. Raza S, Safyan RA, Lentzsch S. Immunomodulatory Drugs (IMiDs) in Multiple Myeloma. Curr Cancer Drug Targets. 2017;17(9):846-857. doi: 10.2174/1568009617666170214104426. PMID: 28201976.
  14. Oostvogels R, Jak M, Raymakers R, Mous R, Minnema MC. Efficacy of retreatment with immunomodulatory drugs and proteasome inhibitors following daratumumab monotherapy in relapsed and refractory multiple myeloma patients. Br J Haematol. 2018 Oct;183(1):60-67. doi: 10.1111/bjh.15504. Epub 2018 Aug 6. PMID: 30080247; PMCID: PMC6220946.
  15. Dalla Palma B, Marchica V, Catarozzo MT, Giuliani N, Accardi F. Monoclonal and Bispecific Anti-BCMA Antibodies in Multiple Myeloma. J Clin Med. 2020 Sep 19;9(9):3022. doi: 10.3390/jcm9093022. PMID: 32961764; PMCID: PMC7565079.
  16. Ricciuti G, Falcone A, Cascavilla N, Martinelli G, Cerchione C. Autologous stem cell transplantation in multiple myeloma. Panminerva Med. 2020 Dec;62(4):220-224. doi: 10.23736/S0031-0808.20.04114-2. Epub 2020 Sep 21. PMID: 32955179.
  17. Zhang X, Zhang H, Lan H, Wu J, Xiao Y. CAR-T cell therapy in multiple myeloma: Current limitations and potential strategies. Front Immunol. 2023 Feb 20;14:1101495. doi: 10.3389/fimmu.2023.1101495. PMID: 36891310; PMCID: PMC9986336.
  18. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Resolução-RE nº 986, de 30 de março de 2022. Carta de aprovação de produto de terapia avançada: CARVYKTI® (ciltacabtageno autoleucel). Diário Oficial da União, 31 de março de 2022, Seção 1. 

CEMED PESQUISA – ARTIGOS PUBLICADOS 

COSTA, Iwyson Henrique Fernandes et al. Comparison of three risk assessment models for thromboembolism in multiple myeloma patients receiving immunomodulators: a Brazilian historical cohort. Journal of Thrombosis and Thrombolysis, v. 56, n. 1, p. 147-155, 2023.

COSTA, Iwyson Henrique Fernandes et al. Incidence of thromboembolism and associated factors in multiple myeloma patients treated with immunomodulatory drugs: a retrospective analysis in Belo Horizonte, Brazil. Supportive Care in Cancer, v. 32, n. 1, p. 35, 2024.

DRUMMOND, Paula Lana et al. Chemotherapy-Induced Peripheral Neuropathy Impacts Quality Of Life And Activities Of Daily Living Of Brazilian Multiple Myeloma Patients. Current Drug Safety, 2023.

DRUMMOND, Paula Lana et al. Real-world effectiveness and safety of multiple myeloma treatments based on thalidomide and bortezomib: A retrospective cohort study from 2009 to 2020 in a Brazilian metropolis. Cancer Epidemiology, v. 85, p. 102377, 2023.

LIMA, Mariana Sampaio Rodrigues et al. Health-related quality of life and use of medication with anticholinergic activity in patients with multiple myeloma. Supportive Care in Cancer, v. 31, n. 7, p. 379, 2023.

MALTA, Jéssica Soares et al. Effect of therapeutic regimens and polypharmacy on health-related quality of life of people with multiple myeloma: a cross-sectional study in Belo Horizonte, Brazil. Current Medical Research and Opinion, v. 38, n. 8, p. 1275-1283, 2022.

MACHADO, Taisa RL et al. Factors associated with potentially inappropriate medications in elderly with multiple myeloma. Journal of Oncology Pharmacy Practice, p. 10781552231190009, 2023.

MACHADO, Taisa Roberta Lopes et al. Use of fall risk-increasing drugs in older adults with multiple myeloma: A cross-sectional study. Journal of geriatric oncology, v. 13, n. 4, p. 493-498, 2022.

ROSA, Mariany Lara et al. Utilização de medicamentos que induzem osteoporose ou fratura em idosos com mieloma múltiplo: estudo transversal. Revista Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde, v. 14, n. 2, p. 922-922, 2023.

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